Qualquer pessoa, à sua maneira, que esteja na luta contra o fascismo, sabe que não vivemos um momento de normalidade. O governo cada dia fecha mais o cerco, e utiliza desde ataques virtuais coordenados, até a judicialização contra as manifestações de pensamento em desfavor de Jair Messias Bolsonaro. Não é também novidade alguma que o governo tem um total desapreço por professores e professoras, pois, em sua visão limitada de mundo, qualquer experiência de ensino que busque a emancipação de pensamento, é interpretada como “doutrinação marxista”.

Nesse contexto Paulo Freire se tornou alvo e inimigo da direita, o símbolo do “marxismo cultural”. Foi dessa escalada contra a educação libertadora que nasceu o projeto Escola Sem Partido, uma iniciativa que ameaçou a liberdade docente nos diversos níveis da educação (básica, superior e pós-graduação). A proposta era claramente inconstitucional, e assim que aprovada pelas casas legislativas, enfrentaria diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF). No estado de Alagoas, a Câmara Legislativa Alagoana aprovou matéria semelhante, que foi rapidamente considerada inconstitucional pela Suprema Corte.

Com as derrotas iminentes, a iniciativa Escola Sem Partido perdeu força, e por algum tempo, educadores respiraram aliviados, visto que o projeto em si, abria espaço para perseguição contra a categoria. O problema é que a escalada contra direitos sociais é operada por pessoas que trabalham dia e noite, ao mesmo tempo em que a classe trabalhadora está fatiada, dividida, fragmentada. Cada categoria cuida de micro interesses próprios, sem perceber que os ataques que vem da classe dominante, funcionam como uma máquina e vai atropelar a todos e todas indistintamente.

Precisamos lembrar da advertência que Bertold Brecht nos fez em seu intertexto: a apatia frente às dores de outras pessoas é capaz de criar uma rede de abandono coletiva, ou seja, a falta de solidariedade com as lutas que nos avizinham, acaba por deixar a nós mesmos suscetíveis aos ataques sofridos pelos donos do poder. E é precisamente isso que estamos vendo.

Dito isto e feitas tais considerações, precisamos discutir a perseguição que diversas e diversos servidores públicos vem sofrendo. O caso que mais repercutiu foi a exigência que o ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) assinasse um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), baseado na Norma Técnica 1556/2020 da Controladoria Geral da União (CGU). O professor Pedro Hallal, nesse acordo, foi censurado, explicitamente. Ameaçado por um Processo Administrativo Disciplinar, o professor foi obrigado a assinar o TAC, em que se compromete por dois anos a não falar mal do governo. E ele não foi o único, a mesma medida, com a mesma alegação foi tomada no caso do professor Eraldo Pinheiro.

A acusação da CGU é que Pedro Hallal foi desleal com Bolsonaro, pois cometeu a infração de “Proferir manifestação desrespeitosa e de desapreço direcionada ao Presidente da República”. Em sua justificativa a CGU declarou que “Quando assume um cargo ou emprego público, o agente se propõe a ser leal com a instituição a que serve. Não tem sentido ele assumir legalmente esse compromisso e, ao mesmo tempo, adotar ações que maculem a sua instituição.”

Extrapolando suas funções, a CGU deu uma nova interpretação à Constituição Federal e estendeu o entendimento da lei 8112/1990 para as redes sociais e ambientes virtuais. Além disso, a nota técnica 1556/2020 cria uma interpretação completamente descabida, qual seja, a equivalência entre cargo e pessoa. Para ser mais claro, a lealdade do servidor público é com a instituição e não com representantes sazonais. Se você é servidor, deve sim ser leal à sua instituição, contudo, a CGU acaba impondo que qualquer crítica a Bolsonaro é uma deslealdade com o próprio Estado. Essa afirmação só é válida, se aceitarmos que ele “é realmente a constituição” como disse o infame presidente, publicamente, em vídeo difundido nas redes virtuais.

Vale lembrar que um dos grandes avanços administrativos do Ocidente, foi o fim do patrimonialismo da nobreza. É muito famosa a frase “O Estado sou eu”, atribuída a Luís XIV, o rei francês símbolo do absolutismo monárquico na Era Moderna. Luís XIV instituiu a si o título de “Rei Sol”, ou seja, súditos em todo o reino e em seus domínios deveriam orbitar em torno da figura do Rei. Nesse contexto, o Estado era propriedade do próprio monarca.

Com a Revolução Francesa, e a posterior decapitação de Maria Antonieta e Luís XVI quase dois séculos depois, o Estado ganhou outro status: de patrimônio do rei, passou a ser representante dos interesses de todas e todos cidadãos. Ainda que o Estado Burguês seja um aparelho de controle e exploração da burguesia, a ideia consolidada é que o Estado não deve representar interesses particulares, e sim da nação. Bem por isso, nossa constituição garante a lealdade dos servidores públicos às instituições, pois, enquanto representante do Estado, servidores públicos tem o compromisso de respeitar e honrar o Estado Democrático de Direito.

Contudo, a acrobacia retórica da CGU vincula o Estado à pessoa, considerando que críticas a Jair Bolsonaro, são críticas diretas ao Estado, logo, seria uma atitude desleal. Esse entendimento enfrenta diversas oposições, entre elas, destaco a atuação da Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público da Câmara dos Deputados que se posicionou contra a nota da CGU e ainda apresentou projeto de lei revogando tais diretrizes de conduta.

No Supremo Tribunal Federal, está em análise pelo Ministro Ricardo Lewandowski, a ADI 6499, que tem como requerente a Confederação das Carreiras Típicas de Estado, e lá aponta a inconstitucionalidade da norma técnica, pois fere diversos direitos, entre eles a livre manifestação de pensamento. Foi com base nessa norma técnica que os Professores Pedro Hallal e Eraldo Pinheiro foram censurados na UFPel. Caso queira entender melhor essa ADI 6499, a Dra. Andressa Abreu explica em nosso podcast a tramitação do caso.

O que devemos ficar atentos é que o governo está usando a força e o peso do Estado para perseguir todas e todos que são contra suas diretrizes políticas, econômicas e ideológicas. Chegou para a equipe do HOp outro documento, em que o escritório de advocacia Mauro Menezes orienta juridicamente a Sindicato Nacional Dos Docentes Das Instituições De Ensino Superior (Andes). Esse documento mostra que a Procuradoria Geral da República em Goiás se prestou a ser mais uma ferramenta para atacar a liberdade docente, passando por cima até mesmo de entendimentos da jurisprudência do próprio STF.

Quer a PGR, que as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) poibam e estabeleçam punições contra qualquer manifestação político-partidária dentro das universidades. A Ministra Carmen Lúcia proferiu entendimento da Suprema Corte sobre o mesmo tema alegando que “a exposição de opiniões, ideias ou ideologias e o desempenho de atividades de docência são manifestações da liberdade e garantia da integridade digna e livre. A liberdade de pensamento não é concessão do Estado, mas sim direito fundamental do indivíduo que pode até mesmo se contrapor ao Estado”.

É contra isso que estamos lutando: diversos ataques coordenados e pulverizados contra pessoas, instituições e direitos. Em 2019, quando os proponentes do Escola Sem Partido reconheceram a inconstitucionalidade da matéria e encerraram suas atividades, a categoria de trabalhadoras e trabalhadores da educação comemorou e sentiu um breve alívio. Um suspiro de Geni, pois, a estratégia usada pela direita foi ainda mais ampla e ardilosa. Em junho de 2020 a CGU estabeleceu a nota técnica 1556 que é muito mais abrangente e nociva que o Escola Sem Partido, porque não se limita à restringir atuação de professoras e professores, ela abre possibilidade de perseguição e censura contra milhões de pessoas.

Para ter acesso ao conteúdo completo do História Oral podcast acesse: www.historiaoralpodcast.com

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