Barra da Tijuca, 2020, véspera de Natal. A juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45 anos, mãe de três filhas, é esfaqueada pelo ex-marido na presença dos filhos, por ele não ter aceitado o término do casamento. Complexo do Alemão, 29 de dezembro de 2020. Roberta Pedro, 26 anos, é assassinada a facadas pelo marido inconformado com a decisão dela de pôr fim ao relacionamento. Duque de Caxias, 14 de janeiro de 2021. Rafaella Horsth, 19 anos, voltava sozinha à noite para sua casa quando foi estuprada e morta a facadas. Manaus, 13 de fevereiro de 2021. Manuella Otto, 25 anos, mulher trans e defensora dos direitos de travestis e transexuais do Amazonas é assassinada covardemente com dois tiros pelas costas por um policial militar. Ilha do Fundão, Rio de Janeiro. O corpo de Bianca Lourenço, 24 anos, é encontrado esquartejado. Crimes bárbaros como estes ocorrem todos os dias, como uma epidemia, e se caracterizam por um motivo em comum: são assassinatos de mulheres cometidos em razão de gênero, ou seja, pelo menosprezo, inferiorização e discriminação à condição de ser mulher.

No Rio de Janeiro, os casos de feminicídio cresceram 19,7% no ano de 2019, se comparados ao mesmo período do ano anterior, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). O Dossiê Mulher 2020, que tem como fonte os registros de ocorrência da Secretaria de Estado de Polícia Civil e analisa dados do Rio de Janeiro relativos ao ano de 2019, informa que foram registrados 85 feminicídios e 344 tentativas de feminicídio em todo estado. Destas, 68,2% e 62,8% eram mulheres negras, respectivamente. Indica, ainda, que 78,8% desses crimes ocorreram no interior da residência da vítima e 82,4% dos acusados eram companheiros ou ex-companheiros das mesmas.

Com as mulheres trans o cenário não é diferente. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o grupo de “travestis e mulheres transexuais negras e trabalhadoras sexuais (…) representa a maioria dos casos de assassinatos”. No ano de  2020, foram assassinadas 175 mulheres trans no Brasil. O alto índice de transfeminicidio se soma ao fato do Brasil ser o país que mais mata a população travesti e transexual no mundo, o que indica o grau de vulnerabilidade e a ausência de proteção que transforma estas mulheres em alvos suscetíveis. Os dados da ANTRA revelam, ainda, um dramático diagnóstico social: o componente de racismo se soma ao sexismo, aprofundando e naturalizando a violência contra as mulheres negras, vulnerabilizando ainda mais seus corpos.

O racismo e sexismo que marcam a violência contra as mulheres negras guardam raízes no nosso passado escravocrata e na conseguinte construção social da falsa ideia de democracia racial, que incide no senso comum cultural do Brasil. Lélia Gonzalez foi uma intelectual negra fundamental para provocar esta denúncia, através de sua produção acadêmica e engajamento militante na década de 1980. Lélia nos deixou contribuições que seguem atuais para os dilemas que ainda enfrentamos, sobretudo ao apontar como a linguagem pode legitimar a objetificação e a violência sexista e racista.

Subnotificação e pandemia 

Como dissemos, o feminicídio é um desfecho trágico da recorrente violência doméstica, do sexismo e da violência de gênero. O Dossiê Mulher 2020 indica que dados e levantamentos empíricos mais recentes dão conta de que a maior parte das vítimas de feminicídio, apesar de já terem sofrido prévia violência, não possuíam registro anterior de violência doméstica: 40,0% das vítimas não haviam denunciado as agressões. Este é um importante alerta, pois demonstra a dificuldade que as mulheres encontram em denunciar as violências sexistas cotidianas, seja pelo constrangimento, seja pela dificuldade de acesso aos equipamentos públicos de assistência à mulher vítima de violência.

A pandemia do Coronavírus tornou o quadro ainda mais dramático. A necessidade de isolamento social fez com que mulheres estivessem vulneráveis à convivência com seus agressores em tempo integral. Segundo os dados do ISP para monitoramento da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Período de Isolamento Social de 2020, houve queda no número de registros de ocorrências na Polícia Civil, se comparado ao mesmo período de 2019. O número de ligações para o Disque Denúncia sobre “Violência contra Mulher” também reduziu 27,6%. Por outro lado, o Serviço 190 da Polícia Militar apresentou aumento na quantidade de ligações sobre “Crimes contra a Mulher” em 5,8%, comparando ao mesmo período do ano anterior.

A lei que tipificou o feminicídio não é, definitivamente, a solução para a violência fatal contra mulheres. No entanto, o feminicídio como categoria específica é um marco legal importante, pois dá maior visibilidade ao fenômeno, fator fundamental para gerar dados que auxiliem no trabalho de prevenção e supressão desta violência. Entretanto, o desafio que o poder público precisa encarar vai muito além da tipificação de um crime, pois passa pela prevenção.

Afinal, nós, mulheres, queremos muito mais do que sobreviver: queremos viver!

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