Este texto é uma análise jurídica. Nada mais, nada menos. Pois muito bem.

“– Djeff, Djeff: meu filho estava estudando para o Enem no pré-vestibular comunitário. Agora ele está em casa, em isolamento, na medida do possível. Não tem aula online… Ele me pede toda hora o meu celular emprestado, mas preciso do celular pro meu trabalho. E também nem adiantaria muito deixar com ele porque a internet é ruim. Às vezes só pega sinal no banheiro e perto das janelas. Outro dia vi meu filho tentando estudar pelo meu celular, no banheiro, encostado na privada. Chorei…”

Foi neste país, nestas condições, que o ex-ministro da Educação, Weintraub, tentou manter o Enem em meio à pandemia. Segundo ele, à época, em um vídeo publicado no seu Instagram, como o Enem é uma competição, então a sua realização seria justa. Nas suas exatas palavras: “Você que ta aí, eu sei que o Coronavírus atrapalha um pouco, mas atrapalha todo mundo. Como é uma competição, tá justo!”

Agora a história se repete, mas de maneira mais trágica: o diretor responsável pelo Enem morreu de Covid-19. Além disso, há recorde de na média de casos novos de Covid-19; recorde de ocupação de leitos em BH e recorde de enterros diários em Manaus.

Mesmo assim a prova está mantida. Não farei o Enem, mas minhas irmãs e meus irmãos negr@s farão! Escrevo por El@s. E também pelas pessoas pobres que farão esta prova. Não se trata de um texto contrário à democracia. Pelo contrário: trata-se de um texto, como se verá, com assento constitucional, ancorado em doutrina brasileira e estrangeira.

Pois muito bem. A desobediência civil constitui um ato público lícito que, embora aparentemente ilegal, não é antijurídico, porque levanta uma questão de legitimidade do próprio Estado Democrático de Direito, como diz Repolês.

Aliás, a própria história mostrou que inúmeras vezes a desobediência civil foi invocada, assim como o direito de resistência, desde Antígona, com sua objeção de consciência; o roubo do fogo de Zeus por Prometeu em benefício da humanidade; os temas debatidos por Tomás de Aquino, na idade média, bem como os textos bíblicos (São Paulo), passando por Jonh Locke, Henri Thoreau, Ghandi, Martin Luther King Jr., até os manifestantes contra testes nucleares do final da década de oitenta e, no Brasil, os petroleiros e o Movimento dos Sem-Terra, além de outros.[1]

Dentre os citados, vale mencionar o discurso Henri David Thoreau, em 1848, no qual ele defendeu a atitude de não pagar um imposto destinado ao financiamento da Guerra do México, que, segundo ele, buscava assegurar a economia norte americana com base na escravidão.[2]

A referida jusfilósofa, que é uma das maiores conhecedoras das obras de Habermas, no Brasil, faz uma distinção entre desobediência civil e direito de resistência, salientando que a “desobediência civil é um ato público lícito que, embora ilegal, não é antijurídico, ou seja, em que pese o fato de não preservar a legalidade do Direito, ela levanta uma questão de legitimidade do mesmo.”[3]

Salo de Carvalho, em sentido semelhante, ao discorrer sobre a conduta desobediente de presos em caso de fugas, rebeliões e motins, sustenta que, em muitos casos, apesar de típica, o fato poderá estar sob a chancela de cláusula supralegal, tornando-se lícito, desde que as ações dos presos não atinjam pessoas, porque, neste caso, poderiam perder a legitimidade do caráter civil.[4]

Já o direito de resistência, de acordo com Repolês, “questiona a própria autoridade do governo como governo legitimamente constituído.”[5]

Daí se observa que, “enquanto os desobedientes civis defendem princípios constitucionais e, com base nestes princípios, questionam a validade de determinado ato, os que exercem direito de resistência questionam o governo como um todo, porque não reconhecem a legitimidade de quaisquer atos do governo.”[6]

No que diz respeito à desobediência civil, sua aceitação não é pacífica, tanto que não há consenso nem mesmo entre autores liberais e republicanos.

Locke, por exemplo, por acreditar que o homem traz consigo, quando do estabelecimento da sociedade civil, os direitos presentes no estado de natureza, entende que o poder estatal é delimitado, motivo pelo qual admite o direito de resistência, em caso de excesso.[7] Kant, por outro lado, ao trabalhar com a ideia do imperativo categórico, acredita que a desobediência civil põe em risco as relações sociais com base na igualdade.[8]

Em Rousseau, por sua vez, se o que dá legitimidade ao povo é a vontade geral – e o Estadoseria a expressão dessa vontade geral construída –, então ele nunca está equivocado; logo, não caberia direito de resistência.[9]

Hannah Arendt, a seu turno, admite a desobediência civil caso o governo desrespeite os valores fundamentais que constituem a autoconsciência de um povo, chegando a sustentar, inclusive, que encontrar um nicho constitucional para a desobediência civil seria tão importante, talvez, quanto à descoberta da constitutio libertatis.[10]

Habermas, embora reconheça certa vantagem do modelo republicano em relação ao liberal, pelo fato daquele resguardar a idea de democracia com base no entendimento,  destaca um problema comum em ambos, que é o fato de se assentarem no paradigma da filosofia da consciência, motivo pela qual adota um modelo de política deliberativa, que é, assim como o liberal e o republicano, normativo, só que a sua normatividade estará no procedimento, ancorado no paradigma da linguagem.[11]

É neste contexto que Habermas afirma que “A justificação da desobediência civil apóia-se, além disso, numa compreensão dinâmica da Constituição, que é vista como um projeto inacabado.”[12]

Se se trata de um projeto inacabado cujo objetivo, entre outras coisas, é o cumprimento das promessas da modernidade, como afirmam Lenio Streck e Pedro Serrano, então os desobedientes civis, neste caso, defendem princípios constitucionais e, com base nestes princípios, questionam a validade de determinado ato. Portanto, caso não seja adiado, o Enem traria uma violação ao princípio da isonomia irreparável, de modo que (qualquer ato!) que vise impedir a sua realização do Enem deve ser visto como uma desobediência civil legítima e, portanto, válida.

Isso não significa, contudo, esteja eu a afirmar que toda desobediência é virtude e toda obediência, um vício. Longe disso. Até porque, como bem demonstrou Erich Fromm, aquele que somente pode obedecer, e não desobedecer, é um escravo, ao passo que aquele que apenas desobedece, e nunca obedece, é um rebelde (e não revolucionário), pois ele não age por princípio; e sim por raiva.[13] Daí a importância do contexto.

Desobediência aqui, portanto, neste contexto, é condição de possibilidade para a re(ativação) dos conteúdos normativos do Estado Democrático de Direito.

Mas, se ainda assim, alguém tiver dúvida da legitimidade da desobediência civil, vale refletir sobre o que disse Estévez Araújo, pelas letras de Salo de Carvalho, ao sustentar que “toda doutrina que nega a justificação jurídica do direito de resistência solo puede sustentarse desde los presupuestos de um positivismo estricto o de um decisionismo de corte autoritario.”[14]

A realização do Enem em meio à pandemia, portanto, vai de modo contrário aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previstos no artigo 3º da Constituição da República, que determinam a erradicação da pobreza e a marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais. Além disso, o Estado viola outra disposição constitucional contida no artigo 3º da CRFB, que é a construção de uma sociedade justa e solidária, inviabilizando, assim, a principal função do direito, segundo o gigante intelectual Adilson Moreira: a transformação da realidade social em favor das minorias oprimidas.

Encerro, por isso, com Afranio Silva Jardim, lembrando que a transgressão é necessária como forma de combater a estagnação social.

Djeff Amadeus é Advogado Criminalista, coordenador do IDPN, membro do MNU e Mestre em hermenêutica filosófica


[1]  REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 21.

[2] THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM,
1997. p.5 – 56

[3] REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 22.

[4] CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2 ed. Rio de Janeiro: lúmen Juris, 2003, p. 255-257.

[5] REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 20.

[6] REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 21.

[7] BOBBIO, Norberto. Direito e Estado em Kant. Brasília, UNB, 1984, p. 40.

[8] BOBBIO, Norberto. Direito e Estado em Kant. Brasília, UNB, 1984, p. 39.

[9] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983, p. 37.

[10] ARENDT, Hannah. Desobediência Civil, in Crises da República. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004, p. 89.

[11] HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade.Tradução de Flávio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Vol, I, 1997, p. 292.

[12] HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade.Tradução de Flávio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Vol, I, 1997, p. 118.

[13] FROMM, Erich. Desobediência e outros ensaios. Zahar: Rio de Janeiro, 1984, p. 15.

[14] ESTÉVES, Araújo. La constitución como processo y la Desobediência Civil. Madrid: Trotta, 1994, p. 146. Apud CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2 ed. Rio de Janeiro: lúmen Juris, 2003, p. 251.

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