Encolheram as chances de o jornalista Julian Assange ser extraditado para morrer nos Estados Unidos. Boa notícia? Claro. Por mais que ainda caiba apelação, a decisão proferida pela juíza distrital Vanessa Baraister, da Corte britânica de Westminster nesta segunda-feira (4), significou um passo importante em direção à garantia dos direitos individuais de um homem cuja “infração” foi expor crimes de guerra cometidos ou chancelados pelos Estados e corporações mais poderosos do planeta.

A extradição de Assange, nas bases estabelecidas no processo protocolado pelo Governo dos Estados Unidos da América, criminalizaria a função básica do jornalismo (fiscalizar e denunciar o poder) e abriria uma assustadora porta ao autoritarismo. Como Assange não é cidadão estadunidense, mas australiano, deportá-lo significaria autorizar os Estados Unidos a virtualmente julgar em seu próprio território, sob sua própria legislação, qualquer ser humano que os incomodasse. Em outras palavras, uma extradição forneceria aos Estados Unidos um precedente legal para impor uma mordaça ao mundo inteiro.

Pense na profundidade desse golpe contra a democracia: os Estados Unidos contabilizam cerca de 4% da população global. Dos 328 milhões de estadunidenses, 239 milhões são eleitores potenciais. Se o caso Assange criasse jurisprudência, menos de 3% da população mundial teriam o poder – muito reduzido, por sinal, dada a própria estrutura antidemocrática da política partidária nos Estados Unidos – de escolher os legisladores que formalmente decidiriam o que se pode ou não dizer, comentar, denunciar, no planeta Terra inteiro. Por isso que, repito, cada mínimo freio à extradição de Assange é uma boa notícia.

Tortura disfarçada de processo legal

Nos quase dez anos de cárcere entre a embaixada equatoriana em Londres, onde se refugiou de junho de 2012 a abril de 2019; e a também londrina prisão de Belmarsh, onde enfrenta a solitária desde então, Julian Assange viu deteriorarem tanto sua saúde física quanto mental. Pálido, raquítico e envelhecido para além de seus 49 anos, Assange teve dificuldade até de ficar em pé durante sessões de julgamento – nas quais, aliás, permaneceu enjaulado e proibido de falar – e não conseguiu recordar informações básicas sobre sua própria trajetória.

Desde maio de 2019, o relator especial da ONU para a tortura, Nils Melzer, alerta: “O senhor Assange exibe todos os sintomas típicos da exposição prolongada à tortura psicológica, incluindo estresse extremo, ansiedade crônica e trauma intenso”. Ainda que a carta da ONU obrigue os Estados membros a conduzir uma investigação imediata e imparcial sembre que houver suspeita plausível de tortura, as preocupações e recomendações de Melzer, produzidas depois de um encontro formal do relator com Assange, foram sumariamente ignoradas pelo governo britânico.

Diante da resposta protocolar enviada por Londres mais de cinco meses depois do relatório, Melzer veio a público denunciar que “a contínua exposição de Assange à arbitrariedade e ao abuso podem em breve custar-lhe a vida”. Nada foi feito, Assange desenvolveu problemas pulmonares e agora vive numa cadeia tomada pela Covid-19. As poucas pessoas que tiveram acesso ao jornalista, como o documentarista John Pilger, dizem que ele não passa de uma sombra do ativista astuto e gênio da comunicação de outrora.

Destruído o homem, matar a causa

Talvez Julian Assange já tenha morrido. Pelo menos aquele, que colocou o império de joelhos com a divulgação de material como o vídeo que ficaria conhecido como “assassinato colateral“, em que marines dos Estados Unidos gargalham do alto de um helicóptero Apache enquanto fazem tiro ao alvo com civis em Bagdá, 2007. Pelo menos aquele, que desnudou o sadismo e a crueldade do império. Aquele, que nunca foi acusado de mentir, já que nenhum documento, entre os mais de 10 milhões vazados nos dez primeiros anos de operação do Wikileaks, teve sua autenticidade contestada. Aquele, cujo crime foi contar a verdade. Agora que a verdade se embaralha em sua cabeça traumatizada, surge uma primeira sentença minimamente favorável.

Olhando para o conjunto dessa prisão arbitrária, a sentença da juíza Vanessa Baraister, por mais que implique um freio ao autoritarismo, parece oferecer quase um pódio para a tortura. Ela se opõe à extradição de Assange não porque o processo é absurdo – por que um cidadão australiano, suspeito de um “crime” que teve cumplicidade de todos os principais veículos de comunicação do mundo, seria condenado sozinho, nos Estados Unidos, ainda por cima? Também não é porque não exista nada no direito internacional que garanta jurisdição global à lei dos Estados Unidos. O motivo é o risco real de Julian Assange se suicidar se for deportado, de tão devastado que está psicológica e fisicamente. Em outras palavras, a sentença tangencialmente atesta a eficácia da tortura promovida pelos governos britânico e estadunidense. Se o objetivo era quebrá-lo, missão cumprida.

E já que ele está em frangalhos, talvez o Judiciário torturador tenha decidido individualizar o caso para enfraquecer a causa; entregar os restos de Assange como prêmio de consolação. “Não é #FreeAssange que pedem os defensores da democracia ao redor do mundo? Então, tomem uma dose homeopática de #FreeAssange: ele ficará preso no Reino Unido. Nós ameaçamos o pior, que seria a extradição, vocês entram em pânico, nós oferecemos o menos pior, que é a permanência dele do lado de cá do Oceano. Quem sabe assim vocês não calam a boca?”

Não tem como calar a boca. Não só porque o jornalista que mais expôs crimes de guerra na história definha numa prisão enquanto os criminosos, assassinos e genocidas que ele denunciou dirigem grandes corporações, participam de governos e engordam com o trabalho alheio. Mas porque a sentença de Baraitser faz questão de manter a criminalização da atividade jornalística ao frisar que Assange esteve “longe de qualquer função de jornalismo investigativo”. Se expor crimes de guerra está fora da função do jornalismo investigativo, para que serve o jornalismo?

O “estado profundo” em Washington tem essa resposta na ponta da língua: a missão do jornalismo no ocaso do Império, sob o capitalismo de vigilância, é substituir o carimbo oficial nas informações que chegam ao grande público. A marca do New York Times confere mais neutralidade e credibilidade a um discurso ideológico sobre a Venezuela, por exemplo, do que o selo da CIA. O que alguém como Julian Assange faz é romper esse abraço nefasto, antipopular, entre os poderes político, midiático e econômico. E enquanto esse abraço se reforçar, não há espaço para demos (povo) no kratos (poder). O poder do povo depende da divulgação do comportamento criminoso das elites.

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