O futebol brasileiro foi pentacampeão em 2002, eu tinha 13 anos. Do tetracampeonato em 1994 quando eu tinha 5 anos para os 13 anos em 2002 a única coisa que aprendi é que as quatro linhas e toda a cultura do futebol não seriam favoráveis à minha existência. Passei pela copa de 1998 presenteada com muitas marcas, o Brasil não ganhou, mas meu corpo e psique nesse processo de copa em copa foi campeão em descobrir uma sociedade inabitável reflexo daquilo que se apresenta dentro das 4 linhas. Não é possível nem nunca foi, desassociar uma coisa da outra. Diversão, paixão, os ídolos, a cultura e as histórias elencadas e eleitas para a posteridade são produtos do passado que produzem o presente e o futuro. Nada é ao acaso. Não é ao acaso que mulheres têm menor prestígio no futebol, não é ao acaso que nomes de pessoas transexuais nos esportes não são conhecidos ou elegíveis à prática esportiva, não são ao acaso os conceitos que transitam dentro desse universo que culminam na imagem do homem cisgênero às quartas ou domingos com sua lata de cerveja na mão gritando gol pelo time que ele torce.

Nascido e criado na periferia de São Paulo nunca fui de ter tempo a estudar e pesquisar sobre o futebol ou as narrativas contadas sobre ele não falo como acadêmico ou estudioso, sou só uma voz trans refletindo sobre tudo isso na esperança de que façamos melhor, por isso sigo escrevendo. Meu tempo de criança era dividido em escola e todas as demandas a ela associadas e a ajudar minha mãe no trabalho autônomo que realizávamos. A escola me ensinou muito através dos conteúdos canônicos, as discussões e aprofundamentos sobre minhas vivências e os significados que elas carregam aprendi nos movimentos estudantis e nos anos de militância. Faço destaque especial as aulas de educação física, marcadores importantes e o único local que eu arduamente insisti, ao menos até os 17 anos, em me desenvolver como jogadora de futebol. Muitas foram as medalhas de participação e os comentários reveladores do tipo “essa menina joga muita bola” – como se “menina” e “jogar muita bola” fossem antônimos e de fato eram e em alguns lugares segue sendo. Sabemos que as narrativas do futebol feminino e LGBTQIAP+ sempre existiram e sempre existirão, mas é a ausência dessas histórias narradas e amplamente repercutidas que tem efeitos devastadores na construção das identidades e nas relações de poder que delas se estabelecem. Passei muitos episódios violentos e traumáticos, o maior deles, não ao acaso, teve a ver com o desenvolvimento do meu corpo, um corpo trans, à época ainda desconhecido. Saí do lugar da “menina que joga muito” e todas as outras crianças da escola gritando e torcendo por mim durante os jogos para o lugar do “meu corpo está em constrangimento, não consigo mais jogar”. Talvez o trauma tenha aparecido desse jeito porque uma colega de classe aos 12 anos me parou depois da aula de educação física, eu toda feliz e pingando suor pra me dizer: “está na hora de você usar sutiã, seus seios balançam e é feio”. Tenho 31 anos hoje e ainda me é nítido os sentimentos e o que o sorriso dessa outra criança carregava. Ainda hoje incomoda me assistir jogando e ter os seios balançando, não porque eu odeie meu corpo ou seios, isso é sobre profundidades basilares do trauma e daquilo que se entende como comportamento esperado para seios e para a toda feminilidade, toda aquela velha ladainha da fragilidade feminina, menstruação, “não gosto de ver mulher jogando, elas são mais lentas e jogam mal” que impregnam na gente e leva tempo até tudo estar em seu devido lugar, sabe?  Fato é que estruturas mamárias vão balançar como qualquer outra parte do corpo balançaria, ainda que aqui, certamente aparecerão os ortodoxos gordofóbicos com seus discursos sobre “saúde” e de que corpos magros não balançam. Sim, todo corpo balança e muito.

Como tudo aquilo que não nos representa fui me desinteressando por futebol paulatinamente. Adorava ver jogo, mas nada do que eu via ou ouvia fazia qualquer menção a minha existência, embora a emoção de ver o time que você torce fazendo gol ainda hoje, esteja viva dentro do coração. Dos 19 aos 29 anos o que eu vivi foi uma longa hibernação em relação a essa paixão pela prática do futebol. Dá pra contar nos dedos quantas vezes entrei em quadra nesse período, mas hibernar o futebol, permitiu que eu me conectasse politicamente com essas histórias e produzisse essas releituras, deslocando dores e constrangimentos para o lugar em que ambas as sensações deveriam estar desde o início, de denúncia e anúncio de que a prática esportiva não é, nem nunca foi direito garantido de todos os corpos.

Futebóis femininos, de corpos dissidentes na várzea ou nas margens, repito, existem e sempre existiram, porque embora reprimidos de muitas formas, controlá-los todos ao mesmo tempo, nunca foi possível, mas a sagacidade do controle está justamente na narrativa que se conta e que garante que os outros futebóis e as variabilidades de quem os pratica sigam sendo marginalizados em razão da supremacia do futebol dos homens cis brancos e que incorporou o futebol dos homens cis negros pra fortalecer a ideia da meritocracia e dos discursos de senso comum que a alimentam: “é possível chegar lá, basta querer, veja o exemplo de X, Y e Z”. A meritocracia aqui tem ponto bem importante porque dá a falsa sensação de que estamos falando sobre um espaço efetivamente democrático e para todas as pessoas, quando sabemos que não é nem nunca foi. É, por exemplo, o paradoxo da Marta ser a melhor jogadora do mundo e ainda que com esse título entrar em campo com uma chuteira denunciando a falta de patrocínio no futebol feminino, ou então, homens cisgêneros negros se recusarem a estar em campo com arbitragem racista que anuncia, sem nenhum constrangimento, o que pensa durante uma partida, ou ainda a primeira jogadora de alto rendimento no futebol argentino ter contrato em 2020. São essas mudanças motivos de comemoração e jurisprudência para mudanças coletivas? Com certeza que sim, mas também deveriam ser espelhos lancinantes da denúncia e de que não nos basta sermos primeiros dos primeiros, o desejo e a luta precisa ser coletiva e se não for, estaremos sempre fadados as migalhas (armadilha do capital e também da meritocracia), ego narcisista colonial e ao fracasso da representatividade plural e expressiva não só do do futebol ou do esporte, mas das diferenças que habitam esse mundo. Enquanto a chegada da escalada for de meia dúzia, não deveríamos chamar a isso de vitória.

Ouvi e ouço muitas vezes, é um discurso da cisgeneridade bastante recorrente, que transicionar é um alívio. Não sei bem se a palavra pra minha transição é alívio, como jogador amador transmasculino sou 10 vezes mais atento dentro das 4 linhas do que era enquanto sapatão. Encontrei certo equilíbrio em poder expressar socialmente minha identidade é verdade, mas a luta é infinitamente maior, desde os outros jogadores, homens cisgêneros, confiarem que a bola pode estar com seus pés, independente da compreensão do jogar bem, do placar final até o exaustivo e necessário diálogo para que nossas identidades sejam reconhecidas e integralmente respeitadas dentro desse universo, que ainda caminha a passos tão lentos. Certamente que fizemos muitos gols de placa hoje para resolver as incontáveis bolas pra fora do passado e é tudo pra ontem, né? No futebol existe uma prática de guardar silêncio para acontecimentos que se elegem importantes e dignos de silêncio sobretudo os de morte, eu ainda estou aguardando, e não sentado, o minuto de silêncio pela Eliza Samudio e para que os futebóis (os nossos, não os deles que já deu tanta merda) sejam potência para outra sociedade e para nós mesmos, porque todas essas dores e o cenário do jeito que está, tá péssimo. O Comitê Olímpico Internacional ou qualquer outra instituição “permitir” pessoas trans no alto rendimento não é favor, é reparação histórica! Bruno, Robinho, Cristiano Ronaldo e tantos outros denunciados terem direito a vida, mas também as consequências pelos seus atos, não é favor é busca pela justiça! E por último e com muito respeito, principalmente pela história e pelo que dela fomos capazes de fazer, que nossa idolatria póstuma a jogadores de futebol (que é o caso do Maradona) sejam dedicadas com a criticidade necessária para crescermos. Maradona é o típico exemplo de como ainda, dentro desse cenário do futebol, seguimos sem conduzir criticamente os diálogos sobre machismo, misoginia, homofobia, transfobia, masculinidade, classismo, racismo, não que ele tenha praticado tudo isso, mas era um machista misógino da esquerda e seu fim, ao que tudo indica, mobilizou uma oportunista falta de memória e não dá mais, porque isso não é sobre atacar um ídolo, mas sobre o que queremos construir para os que chegam nesse mundo, sobretudo em como vamos contar as histórias sem silenciamento de parte alguma. Saber teria me feito diferente, como jogadora, como jogador, como gente. Pra mim não deu, tudo bem, mas desejo e luto para que dê aos que virão, ainda que seja difícil contar, ainda que a gente erre aqui e ali, tem que dar. Falar transforma, repara, movimenta, constrói.

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