De todas as mazelas sociais, talvez a mais cruel seja a fome. Uma família, ao se deparar com a falta de comida, perde toda e qualquer dignidade enquanto ser humano. Em todo o mundo a segurança nutricional é discutida e diversos organismos impulsionam governos para que desenvolvam políticas públicas com vistas a reduzir esse déficit. As causas são diversas: escassez, pouca capacidade produtiva, clima e superpopulação são algumas delas, mas no Brasil, nenhuma dessas alternativas explica o nefasto fenômeno.

A fome não é natural, é na verdade, um projeto! Não existe outra explicação para a volta da fome no Brasil, a não ser a opção política a que fomos submetidos e é flagrante, que após 10 anos de interrupção, o projeto Natal Sem Fome retornou suas atividades em 2017, não coincidentemente, ano posterior ao golpe que Dilma Rousseff sofreu. Esse lapso temporal – a imagem de um Brasil sem fome – durou apenas uma década e isso é muito significativo, pois, estamos falando de uma questão histórica.

Desde a pré-história a escassez de alimentos é um problema para a sobrevivência do Homo Sapiens, a inventividade e persistência humana foram responsáveis por alcançar uma variedade nutricional que poucas espécies conhecem, mas além de fatores naturais, um dos elementos presentes ao longo dessa jornada é a concentração de riquezas nas mãos de alguns poucos. As mais diversas sociedades experimentaram revoltas sociais ocasionadas pela escassez de alimentos para os mais pobres, contrastando com a fartura e desperdício dos mais ricos.

Em Roma, diversas vezes a plebe se levantou contra os patrícios como resultado da fome. Nessas ocasiões, políticos eram considerados culpados pela alta dos preços e atacados com bastante violência. Existia a ideia de que o povo tinha o direito de se alimentar e que a garantia do acesso à comida era uma responsabilidade da glamurosa Roma. Isso movia o sentimento generalizado de indignação e provocava revoltas difíceis de se sufocar, porque não tinham lideranças fixas, eram focos rebeldes difusos. As rebeliões nasciam do entendimento coletivo de que a alimentação era um direito e deveria ser garantido pelo poder central.

Na Era Moderna, o boato de que Maria Antonieta proferiu aquelas infelizes palavras “se não tens pão, comam brioches” impulsionou o processo revolucionário que mais à frente foi cooptado pelos interesses burgueses, o que acarretou no fim do absolutismo monárquico francês e consolidou a burguesia como classe social dirigente. Na França pré-revolucionária o povo morria à míngua, enquanto a nobreza se satisfazia em luxos e banquetes. Pouco importa se Maria Antonieta realmente disse ou não a famigerada frase, o que devemos entender é que o Terceiro Estado acreditava que ela, ou qualquer membro do Segundo Estado, poderiam sim dizer algo dessa natureza. O boato lhe custou a cabeça, literalmente, quando em 1793 foi decapitada na guilhotina.

O Historiador E.P. Thompson analisou diversos eventos ocorridos na Inglaterra ao longo do século XVIII e demonstrou que além de revoltas do estômago vazio, existia uma “economia moral da multidão”, ou seja, não eram indignações pontuais em períodos de escassez, mas sim consciência de que a dificuldade de adquirir itens básicos para compor sua alimentação (principalmente o trigo) se dava pela ganância de comerciantes, que elevavam o preço de acordo com a flutuação da relação oferta X demanda, sem levar em consideração a miséria e infortúnios da classe trabalhadora, isso com a proteção e aquiescência do Estado Inglês.

No Brasil, a fome é regra desde o período colonial. Não temos como falar desse tema sem observar que as condições naturais de nosso país poderiam erradicar qualquer lampejo de desnutrição. Temos clima propício, terra fértil, e a não ser no semiárido nordestino, qualquer canto que se jogue uma semente, ali irá nascer uma árvore frutífera, isso aliado a uma população pequena e disponibilidade de terras cultiváveis. Possuímos também técnicas de produção agrícola que nos deu a alcunha de “celeiro do mundo”. Então com tantas condições favoráveis, por que a fome volta a nos assolar?

Talvez a mais retumbante contribuição que os governos sociais-democratas de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff nos deram foi a erradicação da fome. Lula transformou a questão em uma orientação política constante. O Presidente não admitia que se pudesse imaginar um lar sem as refeições mínimas diárias e, a partir disso, desenvolveu um conjunto de medidas para alcançar o objetivo de tirar o país do Mapa da Fome, como a valorização real do salário mínimo, o programa Fome Zero, o Bolsa Família e a política de geração de emprego e renda. Ao ponto que o projeto Natal Sem Fome se tornou obsoleto.

O Natal Sem Fome foi criado pelo sociólogo Betinho em 1993, com o objetivo de mobilizar a população no combate à fome, seu slogan principal era “Quem tem fome, tem pressa”. Talvez a maior contribuição dessa iniciativa – além de milhões de pessoas tendo acesso mínimo à comida – tenha sido atentar a população de que a escassez de alimentos pode e deve ser combatida como um compromisso de solidariedade que envolve a todos e todas, em um amplo pacto social contra a fome.

A reivindicação foi ouvida, e depois de séculos o Brasil viveu uma década longe dessa triste realidade. Aqui está a chave da questão: erradicar a fome perpassa, necessariamente, por diminuição de privilégios, redução das desigualdades sociais, soberania nacional, investimento em agricultura familiar e consolidação de direitos sociais e difusos, visando proteger os interesses da classe trabalhadora e das minorias, além de uma defesa sistemática do meio ambiente.

Tudo isso atinge diretamente os interesses do agronegócio e do sistema financeiro, além de se opor, frontalmente, às premissas básicas do capitalismo, que conta com a miséria como componente essencial para a manutenção do sistema. Não podemos esquecer também que a fome opera dentro da lógica racista e machista, e de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 80 milhões de brasileiras (os) passaram algum grau de insegurança alimentar. Dessas(es), 10,3 milhões sofreram privação severa de alimentos, mais da metade dos domicílios eram chefiados por mulheres e a fome atingiu, em sua maioria, mulheres e pretos.

O retorno do Natal Sem Fome é consequência do avanço neoliberal. Não existe qualquer possibilidade de justiça social, sem o recrudescimento dessas opções políticas sustentadas por falácia vendida como ciência. Em plena noite de Natal, momento de grande expectativa de acalento e mensagens de esperança, o presidente da república tripudiou na dor dos mais vulneráveis, oferecendo armas a quem tem dificuldade de comprar um pacote de arroz, que chega a quase 40 reais.

O povo precisa introjetar a ideia de que o acesso à alimentação é dever do Estado. A particularização das mazelas sociais e o individualismo permitem que gente como FHC e Bolsonaro continuem impondo miséria e fome a quem produz e trabalha. A fome é um projeto que conta com rascunho, começo, meio e fim; bem por isso, em cinco séculos de ocupação dessa terra Brasilis, apenas durante uma década o povo soube o que era viver sem a presença constante do demônio da fome.

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