No dia 23 de novembro de 2020, o Grupo Especializado de Fiscalização Móvel do Ministério Público do Trabalho da 18° região, realizou operação em que foram libertados de trabalho análogo à escravidão 7 homens. Os trabalhadores executavam obras nos hangares da Base Aérea de Anápolis, porém, o MPT considerou que a empresa contratada para a  empreitada – Shox do Brasil Construções LTDA. – era a responsável por aquela atrocidade, isentando de qualquer participação a Força Aérea. O MPT considerou que a condição escravocrata não tinha relação com os trabalhos da Guarnição, como se as obras nos hangares não exigissem nenhuma fiscalização, ainda que fossem contratadas pelo Estado e pagas com recursos públicos.

As condições descritas pelo MPT são horripilantes. Os trabalhadores foram mantidos em um quarto insalubre, sem condições adequadas para descanso e repouso, sequer dispunham de colchões, não possuíam geladeira ou fogão, não receberam salários, não tinham acesso a água potável, sofriam ameaças de castigos e mutilações e foram trazidos de outros estados, o que impossibilitava que fossem embora. Os 7 resgatados faziam parte de um grupo de 25, em que 18 tiveram oportunidade de escapar daquelas condições.

Entre as denúncias do MPT, a que mais se destaca é que o grupo remanescente ficava o fim de semana inteiro sem fornecimento de alimentos, e para não passar fome fritavam insetos e os misturavam com farinha. Depois da visita do MPT os homens foram levados a um hotel e a empresa Shox do Brasil foi obrigada a pagar as rescisões contratuais e as custas de alimentação, estadia e retorno para cada um dos libertos, uma soma na ordem de 23 mil reais.

Acredite se puder, a empresa escravocrata se recusou a pagar a quantia imposta pela justiça, o que levou o MPT a ajuizar uma ação de Tutela de Urgência para a Justiça do Trabalho, obrigando a empresa a efetuar o pagamento e assim garantir que os trabalhadores retornassem aos seus lares. Além disso, as obras foram embargadas e o alojamento foi interditado.

Como bem podemos ver com as “penas” impostas, a escravidão no Brasil não apenas foi, como ainda é um bom negócio. Das heranças coloniais impressas quase no DNA da elite brasileira, a dificuldade de se desapegar da escravidão é a mais perversa delas. 130 anos se passaram desde a Lei Áurea, ferramenta alcançada após quase 4 séculos de luta e resistência. Os mecanismos de exploração de mão de obra análoga à escravidão tem suas raízes em uma história mergulhada em sangue e suor, obviamente, as condições mudaram, mas não tenham dúvida: em qualquer oportunidade nossa elite retornaria a escravidão na constituição, sem pensar duas vezes.

Se você acha que estou falando um exagero, basta pensar no discurso mais recorrente sobre penas e condições carcerárias no Brasil. Adentrando ao submundo enojante da mediocridade intelectual que se propaga nos grupos de whatsapp, é comum o apelo por obrigatoriedade de trabalho para presidiários, que em bons termos tem apenas um nome: escravidão; em conjunto, certamente, com instalações desumanas e degradantes como as da pior penitenciária talvez das Américas, a unidade prisional Ary Franco criada em 1974, no Rio de Janeiro e ainda em funcionamento.

Caso ainda não tenha se convencido, vamos lembrar mais um caso. O então Deputado Nilson Leitão do PSDB, quando aprovado o texto da Reforma Trabalhista, que por si só esmagou os direitos da classe trabalhadora, ainda sugeriu mais imoralidades que afetariam diretamente a vida de trabalhadores e trabalhadoras rurais, das quais destaco: contagem de moradia e alimentação como salário, cancelamento do repouso semanal permitindo até 18 dias de trabalho sem descanso e o aumento da jornada de trabalho para até 12 horas. 

A proposta foi vencida e não prosperou. Entretanto, o que quero destacar é a tranquilidade (cara de pau) manifestada por Nilson Leitão ao fazer tal proposta e a defendê-la em plenário. Se você não entendeu bem, as mudanças propostas por ele impunha aos camponeses condições de trabalho, que na melhor das hipóteses, poderiam ser comparadas com as mazelas sofridas pelo operariado inglês no século XIX. Outra coisa que não podemos esquecer é que o campesinato brasileiro é profundamente marcado por tensões raciais e nos rincões ainda se reproduz a cultura da Casa Grande e Senzala, se Nilson Leitão fosse vitorioso, não duvide, seria a institucionalização formal da escravidão no Brasil, novamente…

E não venha me dizer que estou exagerando, ou que apenas estamos passando por tempos tenebrosos e que o Brasil não é assim. Entre as décadas de 1970 e 1980 existia no endereço Bairro Boa Viagem. Av. Conselheiro Aguiar, 5000 em Recife, o Hotel Casa Grande e Senzala, em que se distinguia por oferecer aos consumidores a lastimável experiência de desfrutar de serviços de “mucamas e escravos”. Isso mesmo, esse era o slogan do Hotel!

A herança colonial da elite recifense é putrefata e isso não é lá grande novidade, mas experiências com apelos semelhantes são observáveis ao longo de todo o século XX e em todas as regiões do Brasil. Não podemos nos esquecer que entre os parlamentares brasileiros, houve intensas discussões para se estabelecer quase uma “solução final” para pretos e pretas no século XIX. 

Na impossibilidade de se garantir o genocídio aberto e fornalizado na letra da lei, como aqueles perpetrados no Congo Belga por Leopoldo II (muito admirado pelas elites brasileiras), os parlamentares adotaram como remédio a imigração, não por acaso bem próximo de 1888 há intenso fluxo de alemães e italianos para o Brasil, o aumento do proletariado europeu ao sul do Equador era reflexo das péssimas condições da classe trabalhadora na Europa e do racismo no Brasil.

A grave situação exposta no início desta coluna, o caso dos 7 trabalhadores salvos pelo MPT, não é uma distorção isolada de um psicopata ou de um senhor cruel, fora de controle e fora da lógica de sua classe. Ao contrário, é sistêmico! Tais relações fazem parte (em maior ou menor escala) do cotidiano da classe trabalhadora. Patrões esmagam nossos direitos e não se intimidam com acusações, já que as instituições são extremamente coniventes com tais crimes. Tratam trabalho escravo como se fosse algo menor, menos cruel, menos criminoso que por exemplo tráfico de drogas, quando na verdade talvez apenas homicídio, estupro e tortura ocupem tamanho grau de desumanidade entre os crimes perpetrados contra os direitos da pessoa humana.

Não é sobre apenas o ar condicionado no escritório, o cafézinho depois do almoço ou o tempo no banheiro. Não é tão somente uma luta contra o assédio moral, não é apenas busca por melhoria salarial… O povo brasileiro vive condições trabalhistas deprimentes. Quando falamos em lutar contra a retirada de direitos, estamos nos referindo ao combate contra o projeto de pauperização, submissão e exploração da classe trabalhadora; ou fazemos isso como classe, ou sofreremos as consequências, também como classe.

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