A década de 1990 foi a consolidação do projeto ditatorial brasileiro. Aquele era o modelo de sociedade, política e cultura que a Ditadura Militar (1964-1988) desejava para todos e todas nós. Uma democracia capenga, com instituições que trabalhavam para proteger tão somente os interesses de nossas elites, que mantinha privilégios estruturais, garantia o lucro indecente do sistema financeiro com o dinheiro público e que implantava um Estado Mínimo na sua mais pura essência.

Para você que não viveu o esplendor daquela década, ou para quem escorrega nos truques perigosos que a memória nos impõe, uma dica: os anos dourados do Plano Real (1994-1997) esconderam a miséria, a fome, a violência e toda sorte de mazelas sociais que as populações mais vulneráveis sofreram. Não por acaso, toda a estrutura de governo hoje (Executivo, Legislativo e Judiciário) trabalha em fina sintonia para construir uma espécie de máquina do tempo, que nos tira direitos e liberdades, com a intenção de nos arrastar novamente para o projeto de sociedade falido que tentamos superar.

A noventização do Brasil não é bem uma inovação de Jair Bolsonaro, na verdade, podemos até mesmo duvidar que – #elenão – tenha capacidade de pensar algum projeto dessa envergadura. Sabemos que esse governo é um grande Frankstein que se move de acordo com a vontade de seus senhores (o sistema financeiro e o Congresso Nacional). Bolsonaro cumpre o importante papel dentro dessa estrutura de desviar o foco das transformações que atravessamos, que tem por finalidade estancar a participação popular e a justiça social, duas premissas garantidas constitucionalmente em 1988.

Se o prenúncio de tempos melhores foi o desfecho dos anos de 1980, a desesperança foi a marca latente dos anos seguintes. O pandemônio econômico que vigorou até 1993 e o Impeachment de Fernando Collor de Melo marcaram os primeiros anos pós ditadura. Um novo fôlego se seguiu com o Plano Real, mas diferente da narrativa oficial dos grandes meios de comunicação, Fernando Henrique Cardoso conseguiu esmagar a qualidade de vida da classe trabalhadora em seus dois mandatos. É claro que se comparado aos tenebrosos tempos de hiperinflação, a desordem econômica que se seguiu a partir de 1997 parecia brincadeira de criança e esse discurso foi amplamente usado para garantir a reeleição do “ociólogo”.

As epidemias de cólera e tantas outras doenças acompanhavam o dia a dia das periferias nas grandes cidades e a ausência de políticas públicas conjuntas, nos deixava a mercê da morte. A falta de uma saúde pública minimamente adequada, aliada ao deplorável atendimento do saneamento básico, contribuía para que o Brasil tivesse avanços quase insignificantes no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e para piorar, a desigualdade social era nossa marca registrada. 

Mesmo assim, os lucros de nossa burguesia eram incomparáveis. Essa riqueza apenas era possível por um modelo de transferência de renda, em que se retirava recursos dos mais pobres e os repassava aos mais ricos, sistema garantido por relações promíscuas entre Estado e sistema financeiro. Ao final da década, FHC entregou o Brasil com um dólar se aproximando dos 4 reais, a dívida pública em 60% do PIB, juros da taxa SELIC a 40%, desemprego de 11 % e incrível perda de poder de compra. A situação era tão desesperadora, que mesmo com toda campanha terrorista dos meios de comunicação, o eleitorado deu voto de confiança ao projeto político subsequente, que se propunha a alcançar algum bem estar social e nem mesmo o antipetismo enraizado por décadas foi capaz de manipular as eleições em 2002. 

O planejamento econômico em conjunto com políticas sociais que se seguiram de 2003 a 2014 retardaram a miséria imposta pelo plano FHC. Além dos dados econômicos, as políticas educacionais, o empoderamento das minorias numéricas ou representadas, a consolidação de um sistema único de saúde, a luta por garantias de direitos humanos, o atendimento parcial de reivindicações históricas de grupos escanteados por 500 anos, programas de habitação e saneamento, a redução da pobreza e a retirada do Brasil do mapa da fome contribuíram para que a popularidade de Lula alcançasse níveis jamais equiparáveis por outro presidente.

A sociedade começava a mudar. As manifestações de racismo, machismo e homofobia não eram mais amplamente aceitas, jovens da periferia ocupavam vagas em universidades públicas, a classe trabalhadora viajava para Miami… Contudo, mesmo com significativos avanços, essas políticas sociais ainda eram insuficientes para garantir equidade e bem estar social; o projeto, se estabelecido em longo prazo, poderia oferecer reparações históricas urgentes. 

Qualquer avanço nesse sentido é inaceitável para o “Homem Médio”, aquele ser ressentido por se ver incompatível com novos tempos, tão bem descrito por Eliane Brum. Faltava pouco para que as elites dessem as mãos “num grande acordo, com STF, com tudo”. A gota d’água foi a Comissão Nacional da Verdade. Militares engasgados com as políticas de reparação e com o relatório final entregue em 2014 que elucidou atrocidades dos anos cruéis da Ditadura Militar, se contorceram em cólicas intestinais e defecaram apoio ao golpe de 2016. Fomos desde então, presenteados com os resíduos sólidos desse esgoto ideológico e moral e não existe metáfora mais explicativa disso que a nossa realidade: Jair Bolsonaro. 

O objetivo é retomar as estruturas inaceitáveis da década de 90. Um retorno à “normalidade” e ao “espírito democrático do homem brasileiro” almejados pela Ditadura, ou seja, colocar os inconvenientes (humanistas, ambientalistas, movimentos sociais, sindicatos, indígenas, mulheres, pretos e etc.) no seu devido espaço, aquele lugar social construído com violência pela Ditadura Militar. O problema é que a sociedade não é mais a mesma e os recursos para instrução e comunicação são outros, não estamos completamente reféns das imposições ideológicas das nossas elites. 

O conservadorismo, abraçado como causa pela direita brasileira, é uma incongruência histórica, quando não uma grave limitação cognitiva, já que mudanças acontecerão independente do desejo de manutenção ou da expectativa de retorno ao passado, ser reacionário é não apenas uma tolice, mas uma impossibilidade lógica.

Tal qual o mundo reage rapidamente contra a narrativa estulta da direita e seu projeto fora do tempo, o povo brasileiro tende a rejeitar a miséria e a fome como pressupostos civilizatórios. Ainda que a estética política noventista sofra um resgate, sua incompatibilidade com as necessidades vitais de nosso país é latente, ela falhou com o “Príncipe dos Intelectuais” e vai falhar novamente com o “mito” dos boçais. E se existe alguma coisa boa nessa crise que estamos vivendo, é que o modelo de Estado pretendido pela direita é uma contraprova de que o caminho para o desenvolvimento, justiça e bem estar social é pela esquerda.

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