Para quem não sabe, meu pai é ator. Estava em turnê com seu grupo de teatro quando recebeu um postal da minha mãe dizendo que estava grávida de mim. Ele aos 25, ela aos 19. 

Na verdade, meu pai não é só ator. É humorista. Eu cresci correndo entre as praças, parques e teatros pouco equipados de Cuiabá com ele arrancando risadas de uma plateia lotada e dos guardinhas das ruas. Ele era o mestre em inventar um mundo lúdico para nós enquanto coisas difíceis aconteciam ao nosso redor. Pedia desculpas quando não tinha dinheiro pros aniversários e quando faltava o natal por estar trabalhando.

Humorista, ator, diretor, cantor, meu pai é um homem negro das artes e com todo apoio da minha mãe, fez seu nome. Hoje ele tem uma casa boa, carro, conseguiu pagar os estudos dos filhos, pagou os remédios necessários ao longo das nossas vidas. Ele pode ser o típico personagem de novela – o vendedor de laranjas no sinal que se tornou um ator premiado.

Na minha adolescência, foi meu pai quem insistiu para que eu fosse jornalista. Ele disse que eu sabia contar histórias e eu só acreditei nisso quando entrei na Casa Fora do Eixo, para anos depois junto a parceiros de vida, co-fundar a Mídia NINJA. Meu pai estava magoado na época comigo, pela mudança brusca (e pouco pactuada) para São Paulo, mas me ligou em junho de 2013 para dizer que “sabe o que está acontecendo, estamos do lado certo e se preciso for nós te tiramos da cadeia”.

De lá pra cá eu e meu pai já nos celebramos e brigamos muitas vezes. Meu pai não é herói, ele é um homem negro. Transbordando de virtudes e carregando os defeitos marcados na pele de uma sociedade racista. Lembro da decepção que tive quando ele pendeu pro lado do “somos todos humanos” ao aceitar um prêmio por sua contribuição como artista negro para cultura da cidade. Também me lembro do orgulho das vezes que deu aulas, palestras, que abriu o palco para artistas mais novos e sacrificou seu descanso, saúde mental e lazer por mais trabalho, por muitas vezes para empregadores que não sabiam o seu valor.

Meu pai não é herói, é um homem negro. Não só porque ele não veste um uniforme de gosto duvidoso, mas porque os heróis, sejam eles homens de aço alienígenas ou um multimilionário de alma torturada, são todos brancos.  Para pretos as histórias contadas são outras e ele as desafiou com maestria. Meu pai não é herói, porque meu pai é um rei.

Ontem pela noite em Porto Alegre, assassinaram João Alberto Freitas – os seguranças do mercado Carrefour o espancaram até a morte. Antes disso ele foi seguido pelos mesmos seguranças, um sentimento que nós entendemos bem. E que eu já vi acontecer com meu pai centenas de vezes, nas brechas em que ele não estava nos distraindo.

No front midiático, significava que era mais uma noite de denúncia de uma das facetas mais cruéis do racismo no Brasil. No front da família, fiquei pensando como os filhos de João Alberto estavam e foi hora de trocar mensagens com meu pai e pedir pra ele tomar cuidado… em supermercados. Pedi pra ele ligar e falar com meu irmão para alertá-lo também porque eu não conseguiria.

De lá pra cá foram 10 horas de choro, raiva, vontade de desistir e um pensamento pêndulo: se assassinarem meu pai eu vou ter que escolher entre luto e luta?

Foi aí que me lembraram que se não lutar, não tem luto, tem normatização.

E  com isso a gente levanta e fazemos os dois. Em luto, lutamos.

Aos meus amigos brancos antirracistas, eu peço: Lutem. 

Quanto mais vocês lutarem, mais nós podemos viver nosso luto. Lutem como se conhecessem a família de João. Lutem como se tivessem assassinado meu pai ontem no mercado, porque para nós o sentimento é parecido. Lutem como se fossem o pai de vocês, porque por muitas vezes, foram figuras negras que embalaram seu sono. Lutem, porque nossos pais são reis. 

E quando um rei chega, nós não nos curvamos, nós sorrimos.

Salve avós, pais, tios, irmãos, amigos, companheiros.

Salve Beto, salve Jota.

Vida longa aos homens negros desta nação.

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