Por Carla Luã Eloi

As eleições 2020 foram históricas em vários municípios que elegeram as primeiras mulheres, pessoas negras, indígenas, PCD’s e LGBTI+ para cadeiras em que nunca estiveram nesses municípios. O feed do instagram do Mídia Ninja dava até um acalanto nos corações descrentes, depois de dois anos de governo Bolsonaro, de LGBTIfobia, machismos, racismos, genocídio indígena, tudo isso institucionalizado na mão do Estado. As eleições 2020 foram um sopro de esperança, de real possibilidade de mudança, de transformações sociais estruturais, de vencer as forças do conservadorismo e do ódio.

Foram 456 pré-candidaturas de pessoas declaradas LGBTI+, das quais mais de 70 pessoas foram eleitas, dentre elas, 30 pessoas trans. Esses números sozinhos apontam um aumento exponencial, em relação às eleições anteriores, da diversidade nas casas da democracia em todo o país. Há muito tempo o Brasil carece de representatividade e de diversidade nas tomadas de decisão para a população. Temos sim um longo caminho para percorrer, mas temos também muito o que celebrar. Especialmente, levando em conta que esse crescimento de pessoas LGBTI+ nas eleições não foi algum fenômeno simbiótico isolado, mas sim, resultado de muita luta do movimento LGBTI+ nos últimos anos.

No entanto, diante do cenário político que tem ampliado, sistematicamente, as violências contra população LGBTI+, mulheres, pessoas negras e indígenas no Brasil, fica cada vez mais evidente por que não podemos falar de representatividade de maneira acrítica. Apesar da maioria das pessoas LGBTI+ eleitas serem de partidos de esquerda ou progressistas, algumas se elegeram por partidos de direita ou seguem ideologias e políticas de direita. E a direita segue sendo a direita, com posicionamentos conservadores, neoliberais e até mesmo fascistas. Temos pessoas como Fernando Holiday, vereador de São Paulo, negro, que luta contra políticas de cotas ou Damares Alves, mulher, ministra da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, que dentre suas ações mais notáveis, tentou impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos vítima de estupro. Em 2020, dentre as pessoas LGBTI+ eleitas, temos Jessicão, conhecida como ‘A Opressora’, mulher lésbica, eleita vereadora em Londrina, que informa que não irá defender as pautas LGBTI+, mas pretende lutar contra ideologia de gênero.

Obviamente, o movimento negro, grupos feministas e o movimento LGBTI+ lutam contra essas pautas e posicionamentos, independente de quem é a pessoa que os propagam, mas a questão é, podemos comemorar essa representatividade? Talvez as pessoas que celebram essas candidaturas de direita pelo simples fato de serem de grupo dito como minoritário, como por exemplo o LGBTI+, independente das propostas para a população, não tenham dimensão real do que significa ser de direita ou esquerda, politicamente. Por mais que alguém se diga neutro, no jogo do poder, até se abster é se posicionar. O que é importante frisar é que, mesmo aquelas pessoas que lutam pelos grupos que fazem parte e não contra eles – como os exemplos supracitados – se elas seguem algum posicionamento de direita, significa que ela compactua, de uma forma ou de outra, com a opressão do seu e/ou de outros grupos sociais.

Nem pensando na contradição que é uma pessoa de um grupo oprimido, se juntar com o grupo opressor, mas o debate que proponho hoje é por que simplesmente não dá pra não ser crítico quando pensamos em representatividade. Observando recortes interseccionais, a sigla LGBTI+, infelizmente, sempre enfrentou preconceitos dentro do próprio movimento, como racismo, capacitismo, bifobia e transfobia. Se pensarmos, a fundo, a palavra representatividade vem sempre relacionada a duas outras: interseccionalidade e luta.

Representatividade pra quem, historicamente, não ocupava espaços políticos, é finalmente ter alguém que tenha vivência similar, uma voz que pode falar por nós, que possa lutar por nós e, principalmente, nos ouvir. É ver um indivíduo que abre portas, para outros que virão depois, é ver alguém que conhece nossas lutas e as intensifica. Representatividade é criar a possibilidade de uma sociedade mais inclusiva e diversa em todos os espaços.

Pra aqueles que, historicamente, nos oprimem, nenhuma dessas pessoas LGBTI+ eleitas em 2020 são indivíduos, elas são todo o grupo social que representam. Se errarem, se acertarem, seus posicionamentos individuais, falas e ações, tudo isso será computado a todo o movimento. Um homem branco, hétero, cis é individualmente responsabilizado por suas falas e ações. Qualquer outra pessoa é estereotipada com frases do tipo ‘tinha que ser negro’, ‘tinha que ser mulher’, ‘tinha que ser LGBTI+’ e outras frases como essas, que tiram a individualidade dos sujeitos, e os coloca numa massa, como se todas as pessoas desse grupo pensassem e agissem exatamente igual. A ironia, é que a direita defende tanto a meritocracia, mas vai sacar os seus tokens da diversidade, para que qualquer fala ou ação, seja imediatamente computada não ao indivíduo, mas a todo o grupo social que faz parte.

Especialmente para as pessoas que foram eleitas como primeira pessoa LGBTI+ de seus municípios, as responsabilidades para assumir esse cargo é muito grande, é um peso muito grande. Por isso, é de extrema importância que apoiemos as pessoas LGBTI+ eleitas que têm propostas de esquerda e/ou progressistas, que assumirão seus postos em Janeiro de 2021, mas é ainda mais importante nos posicionarmos contra aquelas pessoas LGBTI+ que apresentam propostas conservadoras, neoliberais e opressoras. Representatividade não é neutralidade, e nem significa deixar de criticar as falas e ações de alguém por fazer parte de um grupo oprimido. Essas eleições de pessoas LGBTI+ estão marcando a história, mas representatividade não é apenas números, é parte estratégica das ações para transformação social, que tanto queremos e lutamos, por isso, seguimos na luta.

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