É triste ter que escrever mais uma vez pedindo justiça por alguém – todo dia é uma injustiça, mas o que foi feito com Mariana Ferrer não é um fato como os outros. Diante da situação das meninas e das mulheres vítimas de estupro no Brasil, o que tem de excepcional no caso de Mariana Ferrer?

Eu preciso contar o que vi, já que chegou, sem eu pedir, a sentença que NÃO condenou o estuprador pelo crime de estupro. André de Camargo Aranha estuprou, mas, de acordo com a sentença, nas palavras do Juiz que o absolveu: “considero que não ficou suficientemente comprovado que Mariana Borges Ferreira estivesse alcoolizada — ou sob efeito de substância ilícita —, a ponto de ser considerada vulnerável, de modo que não pudesse se opor a ação de André de Camargo Aranha ou oferecer resistência”. Apesar de provas muito concretas: sêmen do estuprador no corpo e rompimento do hímen (Mari era virgem), a Justiça ficou do lado do homem e nisso não há novidade. “O Estado opressor é um macho violador”, já afirmávamos nos atos do Dia Internacional das Mulheres. Mas vamos ver o que há de novo nesse caso.

No corpo que o Juiz Rudson Marcos (homem) viu uma mulher não vulnerável, eu vejo uma moça de 21 anos trabalhadora que confia em suas amigas/o. Ela tem muitos seguidores nas redes sociais e a casa de eventos quer usar seu prestígio para se promover. Vamos escutar sua voz e seus gritos no depoimento que consta na sentença judicial:

Que foi contratada para trabalhar no estabelecimento Café como divulgadora do local, era influenciadora e modelo; Que já tinha feito dois eventos antes dos fatos; Que como divulgadora somente foi duas vezes, mas já foi em outras oportunidades; Que já fez outros eventos, pelo grupo Uol; Que foi ao local menos que 5 vezes; . (…)

Que depois do almoço, foi até o deque para fotografar, eles também, sempre ao seu redor, também estavam fotografando; Que depois todos desapareceram; Que depois disso, voltaram para dentro, pediu um sorvete e um Gin; Que, depois de tomar o sorvete, pegou o Gin e foi para a piscina, que na piscina estava Jéssica, atrás de si, Sabrina também com uma bolsa; Que, nesta hora, estranhamente o Duda Tedesco começa a grava e parou a gravação em si; Que depois dos fatos começaram a investigar e reconheceram as pessoas, sua mãe investigou; Que as filmagens pararam em si, bem estranho; Que depois, a Sabrina lhe puxa pelo braço para tirar uma foto no bangalô 403, não tinha ninguém, mas era o bangalô exclusivo dos sócios; Que depois mandou mensagem para Fernanda e não recorda de mais nada; Que, de bangalô só tem esse, outros são camarotes; Que esse bangalô 403 é exclusivo dos sócios; (…)

Que mandou mensagem para Sidnei, Sabrina e Fernanda, não recorda a ordem, tentou ligar, eles não atendiam, mandou mensagens pedindo socorro; Que não tinha noção da violência que tinha sofrido, não sabia que estava dopada, até porque, se soubesse teria ligado para sua mãe; Que, de forma inconsciente, dentro do Uber, já sabia; Que sua mãe e sua irmã gravaram as conversas que mandou do Uber, porque estava drogada, bêbada, elas repudiam isso; Que no Estabelecimento, geralmente bebe água com limão, ou Gin, não é de beber muito; Que na data dos fatos tinha 21 anos; Que não recorda quando começou a beber, mas sempre moderadamente; Que nunca ficou embriagada; Que é alérgica, evita, gosta de coisas mais natural; Que infelizmente vive em uma sociedade preconceituosa, evita falar, era repreendida por ser virgem, nunca tinha namorado, sentia preconceito, evitava, até negava, para evitar, porque as pessoas não entendem, não é porque não bebe e é virgem que é uma freira, nenhuma mulher merece ser estuprada…(…)

Que era uma sensação horrível, muito medo; Que mandou mensagem para eles; Que eles lhe induziram a ir no 300; Que foi até o 300 de apê, sozinha, de salto, totalmente escuro; (…) Que os amigos induziram a ir no 300, mas não estavam; Que o único motivo de ir ao 300, era para ver os amigos; Que sempre acaba o trabalho mais cedo, nunca fica mais do horário, tem que cumprir horário de evento de divulgação, cerca de 5 a 6 horas, que é o horário do almoço e o início da festa, quando divulgam o Dj, depois vai embora; Que não iria para outro lugar, sozinha, de salto, a noite; Que já foi no 300, já fez evento de almoço no 300, era embaixadora; Que depois do estupro, sentiu a sensação que estava sedada, nunca sentiu isso, nunca tomou remédio, nunca tomou isso; Que sempre gostou de coisas naturais, era uma sensação de estar sedada; Que depois do ato, estava sem consciência, não tinha noção nenhuma; Que teve noção do estupro foi na hora que estava na delegacia, quando relatou para o delegado; Que relatou para o delegado Pericles e Mauricio; Que foi sua mãe que descobriu que tinha sofrido violência, quando tirou sua roupa, que neste momento não recorda de nada; Que sua mãe tentou pedir socorro para o SAMU; Que eles não atenderam, disseram que não era grave; Que somente do dia 16 foram até a delegacia para fazer o procedimento, que o IGP levou 4 meses para fazer o exame; Que o vídeo das câmeras foram adulterados, não se pode afirmar que levou o tempo registrado…

Que começou a cair a ficha quando estava numa sala sendo examinada por um legista homem, fotografada, afirmando que tinha sido rompido o hímen; Que o legista, inclusive, afirmou que ainda estava sob o efeito de drogas; Que, neste momento, durante o exame, sentiu que estava passando os efeitos da droga, porque começou a sentir dores; Que tinha confusão mental, não raciocinava; Que não tinha coordenação motora; (…)

Que, sobre o porteiro, estava dopada, não sabe, e não subiu, foi “levada” ao local, nunca teve conhecimento do local; Que hoje é ameaçada; Que confirma a foto sobre as roupas que usava no dia dos fatos; Que durante o tempo que trabalhou no local, nunca viu ninguém drogado; (…) Que eles armaram tudo; Que nada justifica uma pessoa ser estuprada…(…) Que sabe de outros casos de estupro no estabelecimento; Que apagou as fotos do Instagram porque depois de 5 meses mudou o foco, agora não é mais influenciadora e modelo, foco é o crime (…)

Agora a conclusão do Juiz Rudson Marcos:

(…) no dia 15 de dezembro de 2018, entre as 22h25min e 22h31min, no estabelecimento comercial Café de La Musique, situado na Avenida dos Merlins, Posto 1B, Jurerê Internacional, nesta Cidade e Comarca, o denunciado André de Camargo Aranha manteve conjunção carnal com a vítima Mariana Borges Ferreira, que não possuía condições de oferecer resistência ao ato, haja vista que teria ingerido substância involuntariamente, a qual viabilizou a ocorrência do crime, a vítima apenas se conscientizou dos fatos em sua residência, onde constatou a presença de sangue e sêmen em sua roupa íntima. In casu, não se desconhece que há provas da materialidade e da autoria, pois o laudo pericial confirmou a prática de conjunção carnal e ruptura himenal recente (fls. 764/765), também não se ignora que a ofendida havia ingerido álcool. Contudo, pela prova pericial e oral produzida considero que não ficou suficientemente comprovado que Mariana Borges Ferreira estivesse alcoolizada – ou sob efeito de substância ilícita – , a ponto de ser considerada vulnerável, de modo que não pudesse se opor a ação de André de Camargo Aranha ou oferecer resistência.(…)

Assim, diante da ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza, mormente no tocante à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência, indispensáveis para sustentar uma condenação, decido a favor do acusado André de Camargo Aranha, com fundamento no princípio do in dúbio pro reo.

III – DISPOSITIVO:

Ante o exposto, com fundamento no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos formulados na denúncia de fls. 1328-1330, para o fim de ABSOLVER o acusado André de Camargo Aranha, quanto à imputação acusatória referente à prática do delito descrito no artigo 217-A, §1º, segunda parte, do Código Penal.

Sem custas processuais.

Publique-se. Registre-se.

Então, o Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal da Comarca da Capital de Santa Catarina, Florianópolis, sentenciou, em 09 de setembro de 2020, apesar das provas concretas, que não havia provas suficientes para condenar André de Camargo Aranha ao crime hediondo que ele praticou. Ele a estuprou? Sim, o juiz não nega o fato, mas, como se trata de um homem branco e das elites, fica a questão: quem sabe André de Camargo Aranha não teria estuprado sem a intenção de estuprar? Já que Mariana não conseguiu provar para o juiz e para o promotor que foi drogada pelo criminoso e levada ao bangalô 300 inconsciente. Para o Juiz, ela deveria ter oferecido resistência para que pudesse ser considerada uma vítima. Eis o falso dilema: se drogada, talvez tivesse sido estuprada, se consciente deveria ter resistido. Como é possível não enxergar aí uma vítima?

Nós, mulheres, sabemos que os estupros podem acontecer mesmo que estejamos conscientes e sóbrias. Nós sabemos que podemos ser vítimas de estupro de nossos maridos, namorados e parentes. No Brasil, meninas são estupradas em suas casas por homens da família e agregados. E esses fatos são comprovados, de acordo com o 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil bateu o recorde da violência sexual em 2018, sendo 66 mil vítimas de estupro no Brasil, o maior índice desde o início do estudo em 2007. A maioria das vítimas (53,8%) são meninas de até 13 anos, sendo que 4 meninas até essa idade são estupradas por hora no país.  A maioria das mulheres estupradas é negra (50,9%).

Vivemos a cultura do estupro. O Brasil foi fundado pela violência contra as mulheres. Nossa origem não pode ser representada pela imagem poética de uma primeira missa sendo rezada sob a paisagem exuberante do Sul da Bahia. O que funda o Brasil é a invasão portuguesa, é a violência sobre os corpos das mulheres indígenas, das Casas Grandes sobre as Senzalas, sobre os corpos-mercadoria das mulheres negras, objetos de prazer dos homens brancos, velhos e ricos. É um país que ama homens e violenta mulheres de várias maneiras e todos os dias. Somos consideradas mercadorias, objetos para o prazer masculino.

Mariana é branca, jovem, na sociedade em que vivemos, atende aos padrões de beleza e trabalhava num ambiente frequentado pelos homens da elite endinheirada de Santa Catarina. Por causa desse público, o Café tem um bangalô exclusivo para sócios: é um local para abuso de meninas mercadorias. Nós, mulheres, sabemos o quanto ela estava vulnerável, mas o Estado não entendeu assim, nem a promotoria. O SAMU, quando chamado, considerou que o fato não era grave o suficiente e, desse jeito, ficou só Mariana e a mãe gritando por justiça.

A maior parte da sentença é um exercício de construção de uma farsa, de uma defesa dos homens: do promotor, do juiz, do advogado de acusação e do estuprador André de Camargo Aranha. Estão se defendendo para justificar a não condenação do acusado e focam na discussão da roupa de Mariana: a roupa não parecia limpa depois do estupro? Ela não caminhou depois do estupro? Se ela caminhou, quem sabe não estava dopada? Então, quem sabe, ela não estaria tão vulnerável? Então, quem sabe, o estuprador, mesmo tendo estuprado, não estuprou? É a farsa para que o estuprador não seja condenado.

Mesmo com todas as provas de estupro, criou-se uma “narrativa” para absolver o homem. Isso me lembra o texto de Eric Hobsbawm, quando ele diz que a ideia de relatividade interessa ao culpado, porque à vítima interessa a verdade. Não podemos relativizar o estupro e nem a violência de gênero. Chega de proteger os machos dos abusos contra as meninas e mulheres!

Enquanto escrevo esse texto, meninas e mulheres estão sendo estupradas e terão medo de dizer, a cultura do estupro machista e misógina vai silenciar suas vozes. Vão perguntar que roupas usavam, o que bebiam, se estavam na rua sozinhas, se não provocaram. Chega de desacreditar das falas das mulheres. A culpa do estupro é uma só: do estuprador.

O vídeo da audiência em que a vítima implora ao juiz para não ser novamente “estuprada” durante a audiência é revelador, é como se ela tivesse praticado um crime hediondo e não André de Camargo. O “acordo” no Brasil é o homem estuprar e a gente não contar para não ficar mal falada.

O que nós temos para dizer para esses homens é que nós não aceitamos mais que nossas meninas, meninos e mulheres sejam abusadas, violadas e estupradas! Nós vamos expor! Nós vamos nos defender! Fazer justiça por Mariana Ferrer é fazer justiça por todas nós que já fomos abusadas, violentadas, estupradas. Eu acredito na fala das mulheres, eu acredito na fala de Mariana Ferrer, e você? De que lado você está?

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