A maioria das mulheres estupradas no Brasil são negras. A maioria das mulheres estupradas no Brasil são pobres. A maioria delas não tem condições de contratar um advogado para trabalhar como assistente de acusação. E a maioria delas não tem a cobertura midiática que o caso da Mariana Ferrer está tendo.

Justo por isso o promotor, juiz e advogado devem ser punidos. Sabem por quê? Porque imaginem o que pensaria uma mulher negra ou mesmo uma mulher branca, pobre, vendo um juiz, promotor e advogado humilhando uma vítima de estupro?

Imaginem uma empregada doméstica que tenha sido estuprada pelo seu patrão vendo este vídeo?

Imaginem uma mulher que tenha ido a uma festa, bebido, sido estuprada, vendo este vídeo?

Imaginem uma menina pobre, abusada por um familiar, pensando que um advogado poderia questionar a virgindade dela em juízo, de forma grosseira, com a omissão do promotor e do juiz?

Imaginem uma mulher que trabalhe na limpeza de um Tribunal, que tivesse sido estuprada por um juiz, vendo este vídeo? Ou que tivesse sido estuprada por um promotor? Ou por um advogado rico?

Imaginaram? Pois é. Agora fica fácil entender por que o juiz, promotor e o advogado devem ser punidos. Devem ser punidos porque tentaram desencorajar todas as mulheres do Brasil a denunciar o estupro. Aqui, para além da discussão em relação ao “estupro culposo”, que tod@s sabem inexistir, quero enfatizar aquilo que me parece mais relevante: o caráter simbólico!

Isto porque, de acordo com Castoriadis, se “tudo que se apresenta no mundo social-histórico está entrelaçado com o simbólico”, então nós somos um “animal symbolicum“, como diria Cassirer.

Com isso, estou querendo dizer que a lei nunca vale por ela mesma, mas sempre pela sua função simbólica, ou seja, pelo modo como seu uso e seus comandos são seguidos e respeitados. Ora, se o judiciário é o garantidor das expectativas democráticas e ele não cumpre a Constituição, seja lá por que motivo for, a justiça sinaliza aos cidadãos que estes também podem tudo, sendo que tudo, aqui, significa estuprar. Daí advém um caos social e total descrença em relação à democracia, dada a frustração das expectativas democráticas criadas por parte daqueles que tinha o dever de assegurá-las.

Sabe o policial que invade a residência de um morador de favela, mesmo sem mandado judicial? Ele o faz porque existe uma autorização simbólica que é dada pelo Ministério Público e pelo Judiciário, que “legitimam” seu ingresso ao não anularem as provas daí advindas, por exemplo. É o que se tem aqui em relação ao estupro. Ainda que fosse condenado, imagina o que sentiria uma mulher estuprada pensando que teria que passar por toda esta revitimização?

Numa palavra: ao Judiciário cumpre-lhe a função de um estabilizador que, a depender do sistema, pode ser de estabilizador das expectativas do mercado, como no caso de um sistema neoliberal, de estabilizador das expectativas democráticas, como no caso de uma democracia ou de estabilizador das expectativas de estupradores, como no caso Mariana Ferrer, em que, independentemente da condenação ou absolvição, a atuação de todos os envolvidos no sistema de justiça contribui para a tentativa de desencorajamento das mulheres de denunciarem estupradores.

Por fim, e mais importante, espero este tema traga à tona outra questão: a necessidade de que voltemos nossa atenção ao que as mulheres têm produzido não só sobre temas envolvendo estupro e feminismo, mas sobre tudo! Que este caso sirva, portanto, para que abandonemos essas doutrinas velhas e ultrapassadas, de homens brancos em sua maioria, os quais são os grandes responsáveis por todos os males que nós vivemos, com suas doutrinas sexistas, racistas e homofóbicas, de conteúdo raso, muito raso, além de estarem totalmente desconectadas da realidade.

Como indicação de leitura para aprofundar nesta e em outras questões, seguem algumas autoras: Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Juliana Borges, Joice Berth, Amara Moira, Márcia Tiburi, Janaína Matida, Marina Cerqueira, Carol Proner, Gisele Cittadino, entre muitas outras.

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