O aumento da temperatura na Terra, o degelo nos polos e regiões de grande altitude, o aumento do nível dos oceanos e da ocorrência e intensidade dos eventos climáticos extremos, inclusive das secas e enchentes, prometem riscos de várias ordens. Ameaças radicais condenam países insulares, implicam grandes depressões e a expansão da desertificação. As potências militares vêm atentando para uma nova ordem de conflitos.

O relativo isolamento do Brasil, no Atlântico Sul, distante das regiões mais densamente populosas ou em guerra, além de dispor de mais recursos naturais, protege-nos das piores ameaças mas, nem de longe, pode nos livrar de pressões e impactos inéditos. A nossa enorme extensão continental dá uma boa dimensão das nossas fragilidades.

O que o degelo na Cordilheira dos Andes significa para o nosso futuro? Não falo do degelo sazonal que sempre irrigou o litoral mais árido do Oceano Pacífico e, também, as vertentes amazônicas, mas da erosão do estoque de gelo “eterno”, que reduz o volume regular de água drenado para a maior parte da América do Sul e do Brasil. Aquele cenário deprimente das secas agudas ocorridas, em anos recentes na Amazônia, com embarcações atoladas, mortandade maciça de peixes, cidades e comunidades isoladas e desabastecidas, pode se tornar o “novo normal”. De quebra, comprometeria a logística de apoio aos batalhões e demais unidades militares nas fronteiras.

Se o degelo dos Andes impacta a política de fronteiras conduzida pelo Exército, a navegabilidade convoca a Marinha, fora o aumento da demanda por apoio aéreo. A Marinha também será proeminente quanto às consequências nefastas do aumento do nível do Atlântico Sul sobre as ilhas oceânicas e a extensa faixa costeira, agravando as consequências das ressacas, das tempestades, do alagamento de áreas baixas, inclusive urbanas, afetando vias públicas, diversos empreendimentos econômicos e unidades militares. Mesmo projetos atuais, como o investimento bilionário na base de lançamento de foguetes em Alcântara (MA), a cargo da Aeronáutica e resultado de acordo militar com os EUA, não dispõem de estudos sobre impactos climáticos.

Claro que as consequências das mudanças climáticas não se limitam às bordas fronteiriças ou litorâneas do país, mas afetarão todo o território e a população. Há tendência geral de concentração do volume de chuvas em períodos mais curtos, agravando enchentes, deslizamentos de terra e erosões, alternados com períodos mais longos de seca, afetando as safras agrícolas e o abastecimento de água, além de agravar processos de desertificação. Preocupa aos cientistas, particularmente, a associação perversa entre os efeitos das mudanças climáticas e o aumento do desmatamento e das queimadas sobre o regime de chuvas da Amazônia, essencial para a manutenção da floresta viva e responsável por parte importante da umidade que é transportada pelos ventos para o centro-oeste, sudeste e sul, além dos países vizinhos do Mercosul, irrigando mananciais das grandes cidades e as regiões de maior produção agrícola do continente.

Revisão de cenários, riscos e estratégias

Estamos falando de consequências que vão muito além das competências das Forças Armadas e envolvem funções do governo federal como um todo, assim como de Estados e municípios. Cenários específicos dos impactos locais mais prováveis, em cada caso, devem orientar a revisão dos planos diretores dos municípios e os investimentos futuros. São inestimáveis os riscos sobre a infraestrutura de transportes e de comunicações. Problemas de saúde pública e migrações em massa serão mais frequentes. Será preciso, sobretudo, rever as estruturas e estratégias de atuação da defesa civil, a cargo dos Estados. Como já ocorre em situações emergenciais, principalmente as que tenham dimensões interestaduais ou internacionais, a Polícia Federal e as Forças Armadas serão mais demandadas.

O desafio que o agravamento das condições climáticas coloca para o país, como um todo, e para as Forças Armadas, em particular, requer a definição de novas políticas de defesa nacional para este século. Não apenas para suas estruturas físicas, mas sua missão estratégica, das prioridades de investimento, de acesso à novas tecnologias, de formação de quadros, de construção de parcerias e de alianças, em especial com os atores públicos e privados que produzem informações ou atuam de forma qualificada com agendas de mitigação ou de adaptação às mudanças climáticas.

Se, por um lado, essas considerações são óbvias, parecem, de outro, conversa de maluco, num contexto político em que o governo federal volta-se contra a ciência e fragiliza instituições públicas imprescindíveis para enfrentar as mudanças climáticas, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os sucessivos aumentos no desmatamento e nas queimadas agravam as condições climáticas locais, regionais e globais, dilapidam recursos naturais estratégicos e levam o país a um grau inédito de isolamento internacional. O Brasil oficial caminha na direção oposta à história e suas políticas amplificam o problema em vez de equacioná-lo e enfrentá-lo, o que poderia evitar seus piores efeitos.

São profundamente danosos para o Brasil e para o mundo o ceticismo climático, a ignorância deliberada e teimosa, a promoção da predação dos recursos naturais e a criminalização vazia aos que a eles contrapõem-se, enquanto a crise climática aprofunda-se. É incrível que o núcleo militar, que tutela o presidente da República, apegue-se a ideologias, preconceitos e frustrações passadistas para referendar a condução do país no rumo ao abismo, mesmo dispondo de condições físicas e humanas para poder superá-lo.

Brasil X potências mundiais

Enquanto as principais potências do futuro preparam-se para liderar o mundo no enfrentamento das mudanças climáticas e fazem enormes investimentos em energias e em tecnologias limpas, o governo brasileiro fomenta o desmatamento e a destruição da biodiversidade como se fossem essenciais ao progresso. O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que deveria ser o centro de inteligência estratégica do governo, perde-se em declarações raivosas para atribuir, de forma falsa e inverossímil, a índios, ONGs, jornalistas e cientistas a responsabilidade pela péssima repercussão planetária das declarações, políticas e maus resultados do governo do ponto de vista socioambiental e climático.

Mesmo neste cenário de obscurantismo político no núcleo central do poder, há sinais de vida inteligente em nichos do governo, inclusive no Ministério da Defesa. Em 22 de julho, o ministro Fernando Azevedo, entregou ao presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (DEM-AP), uma proposta de atualização da Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa, onde se lê: “impactos provocados por mudanças climáticas ou por pandemias poderão acarretar graves consequências ambientais, sociais, econômicas e políticas, exigindo pronta resposta do Estado”.

O documento ainda está longe de dimensionar as reais implicações das mudanças climáticas e traz um ranço retórico tutelar, que supõe a ignorância da população sobre a crise climática e desconsidera o avanço da consciência climática em vários setores da sociedade e da opinião pública em geral. É mais o governo que mantém uma postura de ceticismo suicida. Mas o texto do ministério é um indicativo de por onde se poderá reformular a política e a própria pasta para enfrentar o desafio maior destes tempos, quando houver uma conjuntura política mais favorável para isso.

A política do governo consiste em cooptar fisiologicamente quadros militares para exercerem funções de confiança estranhas à sua formação, como ocorre nas áreas de saúde e do meio ambiente. Tem desviado para o Ministério da Defesa recursos e competências de outras áreas, como se isto o fortalecesse, quando, na verdade, o expõe a crescentes cobranças da sociedade. Em vez disso, a Defesa deveria priorizar a formação de quadros, o desenvolvimento de competências e a apropriação de experiências que a coloquem na vanguarda, e não na retaguarda do processo civilizatório, focada nos desafios dos novos tempos.

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