“Toda teologia é um misto de gente.
Uma união de visões de mundo.
Um turbilhão de experiências com Deus”
Enrique Dussel

Mesmo diante das denúncias sobre sua família, mesmo com a postura agressiva para com a imprensa, mesmo com a não adoção de medidas integradas contra à Covid-19, negando que combate à pandemia deve ser concebido política de estado, Jair Messias Bolsonaro surpreendentemente amplificou sua base social de 31%, para 40% segundo última pesquisa. A pergunta óbvia é entender como o governante consegue manter a adesão social a seu governo tão pouco preocupado com políticas populares? Como um governo tão ligado a práticas da ‘velha’ política como rachadinhas e a negociação de cargos no parlamento segue mantendo e amplificando sua base social? Um dos indícios de sua aprovação está na capacidade de se comunicar ao público preferencial: o cristianismo conservador. Seus discursos são sempre no mesmo tom. Salpicando expressões cristãs ligadas do fundamentalismo, versa sobre liberalismo de mercado até a questão da reforma da previdência.

Portanto, sustentado sob a lógica fundamentalista do turbilhão de versículos bíblicos colore todos os assuntos sobre o tom do deus cristão. Além disso, sempre que pode, Bolsonaro faz aparições em eventos evangélicos, como, o evento “The Send”, realizado em fevereiro de 2020. Em setembro deste ano, compareceu à Convenção das Assembleia de Deus do Distrito Federal. Todas aparições milimetricamente pensadas para mostrá-lo como presidente seguidor de Jesus em um país proeminentemente cristão. Tais atitudes demonstram que existem dois vetores formativos desse cristofascismo de Bolsonaro. Um, tramado pelos líderes das grandes corporações cristãs. O outro, se estabelece na forma como o presidente expressa esse cristianismo autoritário. Com os dois vetores, alimenta sua hegemonia governamental com um conjunto de práticas teológicas e doutrinas com as quais sustentam sua “teologia do poder” (C. Schmidt).

Também existem pelo menos três grupos cristãos que carregam teologias e doutrinas que se misturam fomentando a teologia governamental de Bolsonaro: 1) o catolicismo conservador e seu deus do alto; 2) os pentecostais das grandes corporações com sua teologia da prosperidade e teologia do domínio; 3) os protestantes tradicionais e a doutrina da eleição. Assim, passamos a explicitações do misto de discursos de deus que ajudam afiar a lâmina do maquinário bolsonarista.

O deus despótico do catolicismo colonial

O presidente Jair Messias Bolsonaro foi criado no catolicismo, embora não seja um frequentador assíduo. Apenas recentemente em sua trajetória política amplificou os vínculos com o catolicismo. Como católico assume a identificação com o setor conservador. É um grupo que se reconhece ligado à formação do Brasil, que também praticou a morte/silenciamento das tradições indígenas e as afro-diaspóricas. Portanto, ligado à colonialidade. Os conservadores católicos atualizam a memória dos jesuítas e beneditinos educadores do catolicismo colonial, que supostamente trariam a luz sobre o “novo mundo perdido”, ao custo do sangue de índios e de negros escravizados e mortos. São grupos que se preocupam em afirmar a ortodoxia colonial e criticam a pluralidade, as esquerdas, os movimentos indígenas, afro-brasileiros e os grupos LGBTQI+.

O seguimento católico conservador é um dos pilares do governo Bolsonaro, e justifica, por meio da ideia de Deus, a representação dominante do homem europeu, hétero, cis, que tem todos os direitos ante a reprodução social. No fim de 2019, o dado ficou escancarado quando o ex-ministro Roberto Alvim fez um tétrico discurso evocando traços nazistas. Além do discurso, o cenário mobilizado por Alvim também revelava muito do caráter fascista. Acima da cabeça do então ministro, uma foto de Bolsonaro. Ao lado na mesa, a cruz utilizada nas batalhas da colonização dos povos indígenas no Sul do Brasil e no Uruguai. A cruz faz parte da iconografia da guerra colonial (vide foto 1 e 2) o que foi documentado nas missões jesuíticas no Brasil, e inspirou na Europa a Cruz de Caravaca. Ela simboliza a vitória da Igreja sobre os supostos gentios, bárbaros, naquele caso, os povos muçulmanos e os índios na América Latina. A evocação da cena de Alvim é afirmação da supremacia do cristianismo europeu sob as demais expressões religiosas no Brasil.

Ainda sobre a associação de Bolsonaro aos católicos conservadores, o presidente postou o vídeo “Templário de Maria”, no dia 15 de abril de 2020, quando recebeu um grupo de católicos. No diálogo travado com o grupo, a demonstração dos traços do cristianismo colonial de roupagem moderna. Uma senhora no vídeo disse: “aqui é a Terra de Santa Cruz, que temos um cruzeiro que nos cobre. Somos abençoados por deus. deus pai está sobre nós e o Espirito Santo (…)”. Bolsonaro postou o vídeo com a fala da mulher dizendo literalmente que o presidente era: “o protetor nosso, o Senhor foi escolhido para dirigir essa nação, a terra de Santa Cruz (…) Como o senhor disse, é o Brasil acima de tudo, e deus acima de todos”. Ainda no vídeo, a fiel argumenta que Bolsonaro foi escolhido pelo divino para dirigir a nação, chamada pela religiosa com o nome pelo qual o Brasil era conhecido no século XVI: “Terra de Santa Cruz”. Sim, designa o país tal como as primeiras cartas jesuítas faziam chamando de “novo mundo”.

O divino ressaltado por ela é o que está acima de todos, lá em cima, com pouca relação com a população. Mais parece ser de um rei despótico. O vídeo não termina com a fala da senhora da Terra de Santa Cruz. Na Filmagem, mm homem discursa em termos teológicos sobre o governo Bolsonaro: “O Brasil tem uma especial participação no plano de salvação de nosso Senhor Jesus Cristo e o senhor foi escolhido por deus para colaborar para esse plano de salvação (…) tudo será vencido pelo poder de deus, e deus do alto está contigo”. Destaco aqui o termo “plano de salvação” que é central para o pensamento católico médio, desde Santo Agostinho.

Portanto, para o grupo o “plano de salvação” do Brasil passa pela figura de Bolsonaro, pois é líder da nação, cujo Deus único está lá do alto e gere tudo a partir do presidente. Logo, para o grupo de católicos conservadores, Bolsonaro resplandece um sinal do divino, no qual dá ordens e vence as batalhas. Ele que seria um déspota debruçado sobre os súditos e pisa sobre os gentios – setores de esquerda, mulheres, pobres e heterodoxias que vivem no país.

2. O Deus próspero e territorial das grandes corporações pentecostais

Junto ao deus despótico-colonial do catolicismo conversador, há outra base da teologia do bolsonarismo, o cristianismo das grandes corporações pentecostais. São tais corporações que munem o governo com um tema central, uma teologia, que, na atual gestão, recebe contornos mistos entre uma teologia da prosperidade governamental somada à teologia do domínio. Essa teologia foi exposta quando Bolsonaro foi à última vez ao Templo de Salomão para ser ‘orado’ pelo Bispo Macedo (Edir Macedo – foto 3 e 4). No ato, Macedo carrega em altas doses da teologia da prosperidade, mas também utiliza a “teologia do domínio”. Essa última, se baseia na ideia de que existem demônios que dominam regiões (bairros, cidades, países), instituições e grupos étnicos, tribais, culturais e religiosos, que necessitam ser libertos por meio da oração ou de guerra espiritual.

Na celebração na IURD, utilizou a unção com óleo: “vamos consagrá-lo, ungi-lo como o profeta Samuel fez sobre Davi”, afirma o bispo. Na cena, Macedo tece um jogo simbólico fundamental para Bolsonaro: liga-o a figura do rei Davi – rei poderoso e controverso que levou o crescimento de Israel. Assim, Bolsonaro foi abençoado por um “homem de deus, como Samuel” – nesse caso Macedo. Na oração, Macedo diz que “consagra esse homem, abençoando a ele, abençoa toda a nação, que traga um novo Brasil, que varra o mal, sendo próspero de fato (…) Graças a deus, amém!”. No ritual, o bispo montou a cena a partir do texto bíblico de 1Samuel 9 destacando que Samuel abençoou Davi para liderar a nação e instaurar um novo momento para Israel. A celebração na bíblia trouxe a prosperidade para Israel, e, foi atualizada no Templo de Salomão para liberar anos de riqueza e prosperidade para o Brasil de Bolsonaro.

A partir da celebração conduzida por Macedo, se observa que os grupos pentecostais de grandes corporações ajudam a construir a teologia autoritária de Bolsonaro, trazendo sobre ele o elemento da “unção”, somado à teologia da prosperidade e à teologia do domínio para realçar que com esse governo a nação poderá ter um novo momento, mais próspero, tal como foi Davi em Israel.

3. O Deus dos eleitos das grandes corporações protestantes tradicionais

As igrejas tradicionais protestantes (presbiterianas e a batistas) compõem a terceira aresta de sustento do governo. É de se destacar que esses representantes são tão importantes que, diferente das outras corporações cristas, fazem parte da área mais “ideológica” (como escreve Gramsci) do governo. Só para exemplificar, os integrantes da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) comandam os ministérios da Educação e Cultura (o MEC), com o ministro e o pastor Milton Ribeiro, e o Ministério da Justiça, com o também pastor, André Luiz Mendonça, ambos com formação e atuação na Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Junto aos dois pastores, temos mais dois representantes dos protestantes tradicionais com cargos e destaque. A direção da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes) é ocupada pelo ex-reitor da Mackenzie, Benedito Aguiar. O batista Valseni Braga, ocupa o cargo da direção do CNE (Centro Nacional de Educação). Embora, ambos não sejam pastores, tiveram destaque junto às instituições batistas e presbiterianas por anos. Destaco que esses quatro são quadros técnicos do bolsonarismo, permitindo os movimentos do maquinário do estado atual.

Além disso, os protestantes tradicionais têm influência na teologia cristofascista de Bolsonaro, quando defendem que o presidente foi “escolhido”, “eleito” para assumir o país por deus. Quem pratica esse jogo teológico é o pastor batista Josué Valandro Junior, pastor da primeira dama, Michelle Bolsonaro. A doutrina da eleição é uma chave das igrejas que vieram dos movimentos puritanos da Inglaterra que ajudaram a formar os EUA, e, depois chegaram ao Brasil.

Tal como Macedo, Valandro Jr recebeu Bolsonaro para “ungi-lo” no dia 26 de maio de 2019 (foto 5). Na cerimônia fez uso das seguintes palavras: “Santo deus pai glorioso, temos de agradecer a chance que temos de sonhar com o Brasil melhor, temos visto a sinceridade, a integridade, a vontade de trabalhar, temos visto, Senhor, a vontade desse vosso servo, de ver o novo Brasil (…) que o povo se una debaixo daquele que o Senhor escolheu, separou para ser presidente da nação, Jair Messias Bolsonaro”.

Ao receber Bolsonaro, Valandro Jr enfatiza que ele é “escolhido”, “separado” para o cargo político de presidência do país. Isso merece destaque: não é uma simples escolha de uma pessoa por uma religião, uma conversão, ou algo assim. Na fala do pastor, Bolsonaro é escolhido por Deus para liderar a nação, logo ele foi eleito divinamente presidente antes da eleição de 2018. Esse dado é reafirmado por Valandro Jr numa live com o filho de Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, realizada no dia 30 de abril de 2020: “o presidente é alguém levado por deus, tem um vínculo forte com o espiritual, não resta dúvidas que é alguém escolhido por deus para levar a nação”. Essa lógica teologia é poderosa. Um sacerdote-pastor afirmar que Bolsonaro foi “escolhido”, “separado” por deus, é algo é tão forte que nem o tempo poderia resistir, como sugere a “doutrina da eleição”. Teologicamente, os eleitos foram separados por deus desde “antes da criação do mundo”, logo anterior a qualquer compreensão humana.

Assim a doutrina da eleição foi atualizada sobre uma figura política do presidente genocida fornecendo a ele munições teológicas poderosas. Pois se Bolsonaro é eleito de Deus logo não cabe a homens e mulheres questionarem. Isso porque para os cristãos, os desígnios de Deus não podem ser discutidos, problematizados. Eles são anteriores a qualquer razão humana. Logo, primados de uma sabedoria maior.

4. Nunca se viu um governo tão abençoado pelas igrejas

Todo esse complexo teológico-doutrinário vem ajudando na sustentação do governo Bolsonaro, como disse, em três arestas: o catolicismo conservador, os fundamentalismos dos pentecostais de grandes corporações e os protestantes tradicionais. Assim, as três grandes matrizes cristãs sustentam o governo Bolsonaro mesmo diante de tantos escândalos e posicionamentos contra a população. Elas se somam e atualizam uma teologia política governamental sob sua figura de Bolsonaro que se mantém intacto em termos políticos. Todo esse trabalho vem sendo feito de forma tão complexa, que nunca se viu na história do Brasil um governo tão abençoado pelas igrejas como de Bolsonaro. Nunca se viu um governo tão preocupado nos diálogos com a ala cristã, que desenvolve novas formas da teologia estatal ao misturar a doutrina da eleição, a teologia da prosperidade, a teologia do domínio e a teologia colonial.

Essa mistura que dá forma à teologia autoritária de Bolsonaro pôde ser captada quando, emocionado, discursou na celebração da Frente Parlamentar Evangélica, no fim de 2019. Ele postou o discurso algumas vezes nas redes sociais, e, afirmou: “Posso ser o chefe do poder mais importante da Republica, mas o homem do Brasil é Deus”. Essa frase resume a lógica cristofascista de Bolsonaro unindo as três matrizes teológicas aqui desenvolvidas. Quando Bolsonaro destaca que deus é homem da nação, posiciona-o como homem despótico. Ele ratifica ao repetir: “deus foi muito generoso para conosco, me escolheu antes de tudo, o triplo, além da segunda vida, uma família – a base da sociedade”.

Ao relembrar a violência da facada do processo eleitoral afirma “escolhido por deus” para governar a nação amplificando a doutrina da eleição puritana dos batistas e presbiterianos. Amplifica porque entende que Deus não apenas elege pessoas para salvação, mas também, escolheu-o para governar o país. O divino faz isso pois “O Brasil é um país rico de tudo, com deus no coração fazemos de tudo para ganhar o sentido da prosperidade”. Na frase une seu projeto cristofascista misturando a doutrina da eleição, teologia da prosperidade, teologia do domínio, mais a figura do divino governador típico da colonialidade.

Por isso, repito: nunca se viu um presidente tão afinado com as grandes estruturas cristãs. Nunca se viu um dirigente que falasse tanto de deus nos discursos oficiais para sensibilizar sua base social promovendo-se um “rei-presidente segundo o coração de deus”. Nesse sentido, existe uma teologia do bolsonarismo, que desenha sua figura recheada de fragmentos cristãos em prol de uma teologia autoritária, despótica ligada à implementação fascista do neo-ultraliberalismo no país. De fato, a gestão de Bolsonaro inaugura no país uma nova modalidade de governança que é tanto “abençoada” pelas igrejas, e tanto abençoador delas. Ou seja, profeta mesmo é Marx que desde os oitocentos sinalizou existe uma relação direta da cúpula governamental (cristofascista) e os benefícios socioeconômico de quem o sustenta.

Referências:
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Civilização Brasileira, 1982.
LOWY, Michael. A guerra dos Deuses, Petrópolis: Vozes 2000.
MARX, Karl. O capital – volume II. São Paulo: Boitempo, 2013.
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.
RANCIERÉ, Jacques. Ódio a democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
SCHMITT, Carl. Théologie politique. Paris: Gallimard, 1988.
SOLLE, Dorothee. Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970.
TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo, Aste, 1986.

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