Por Lia Maria

Gozar o futuro, para mim, é sobre o poder ancestral de co-criar uma realidade afro-diaspórica com base nos sonhos ancestrais a serem realizados no presente. Somos, cada uma de nós, responsáveis por seguir a semeadura, o plantio e a colheita de humanização, liberdade e direitos conquistados por muitas mulheres e homens negros que construíram o nosso caminho na diáspora.

Foram — e ainda são — milhares de batalhas, lutas, sonhos, planos e barreiras enfrentadas para que pudéssemos hoje pensar no prazer de estarmos vivos e orgulhosas — desde o poder viver até o poder lutar por direitos básicos de alimentação, moradia, saúde e educação — e quanto mais o poder construir identidades estéticas e fazer as pazes com o espelho e celebrarmos nossos corpos negros, nossas histórias e arquétipos com autoconceito positivo. Enfrentamos cotidianamente um sistema necrófilo e genocida que nos mutila com base no racismo estrutural que nos atravessa a vida.

A pirâmide social brasileira foi estruturada de forma que a potência do gozo das mulheres negras historicamente foi cercedada.

Nesse sentido, a pirâmide social brasileira foi estruturada de forma que a potência do gozo das mulheres negras historicamente foi cercedada. Nós somos a cabaça da humanidade, germinamos ventos, águas das doces às salgadas, somos cerne e centro protagonista de um processo de revolução social e racial transformador. Tudo que vivemos hoje foi sonhado por nossas mais velhas e criado com passos que vêm de longe.

Importa fazer um exercício sankofiano — de olhar para trás e aprender com o passado — sem vitimismo, mas mirando futuro com a valoração de que caminho se faz caminhando. Nossas memórias coletivas falam de gatilhos delicados como exploração de nossos corpos e mentes, violências físicas e simbólicas em prol de um lugar de subserviência para a liberação feminina de uma categoria não negra. Ora o nosso direito à alegria, à realização como ser humano foram cortados por papéis que a escravização nos atribuiu. Outrora o falocentroismo ceifou nossa voz, castrou nossos movimentos e até mesmo aprisionou nossas escolhas — tal qual os pressupostos de poder da branquitude tratam de invisibilizar nossos feitos, o sexismo e a misoginia tratam de nos subtrair da história.

Conscientes do que nos aprisiona, sabemos que se nós não construirmos nossa estratégia de vida e se não verbalizarmos — e até mesmo registarmos nossas criações como nossas — outrem vêm se apropria da nossa propriedade intelectual. É sobre uma fala sobre o poder que temos de criar redes, ter idéias, realizar rebeliões — o que fazemos cotidianamente é uma ciência a ser valorizada e merece ser cunhada. Afro-futurar é um prazer conquistado, saibamos gozar desta vitória!

Somos fruto de mulheres negras, aquilombadas, que se hermanam e literalmente compram a liberdade de uma nação. Hoje termos espaço, coragem e parceria para falar dos prazeres que nos movem na arte, na cultura, na política e na intelectualidade — é a construção libertária de nossos lugares de falas amefricanas. O poder admirar nossos espelhos, vibrar as conquistas contemporâneas de nossa insubmissão na construção de nossas identidades na moda, na arte, nas artes marciais, na música e literatura e em tantos campos — são alguns dos lugares de prazer a serem celebrados.

‘O espírito da intimidade’ de Sobunfo Somé nos fala desses segredos e acordos que co-criar um futuro negro de realeza, altivez com reconhecimento, verdade e alegria é afro-futurar e gozar a liberdade de sermos resistência e empoderamento — não percamos a perspectiva de que o pessoal é político e os “sucessos” individuais hão de ser coletivos. Sejamos nossos melhores espelhos, amemos nossas negruras, gozemos nosso futuro!

Um texto escrito pela sabedoria futurista e ancestral da incrível Lia Maria, da Diaspora009, para a editoria PRETAS GOZANDO, da Coletiva Conecta. Lia Maria é fundadora da Diaspora009 (DF), capoeirista, artista, designer, estilista e ativista.

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