Por Vinícius Alves [1]

Em março deste ano, quando as primeiras medidas de isolamento social foram anunciadas um conjunto de atividades foi suspensa. Dentre elas, a suspensão ocorrida no setor cultural fez com que muitas pessoas fossem gravemente feridas nos seus cotidianos. O impacto no nosso entorno foi notado já nas primeiras semanas da medida.

No campo da cultura fervida, um conjunto de atividades, eventos, festivais, festas, shows e encontros foram suspensos. Muitas de nós estavamos, mais uma vez, jogadas à própria sorte. Parte significativa de nós, mesmo em tempos fascistas, utilizou das cenas festivas, dos circuitos independentes, da produção artística e cultural marginal e dissidente, para tornar possível e rentável a nossa projeção de liberdade.

Ser livre para nós era fazer o nosso corre, dar o nosso close e construir nossas redes de cuidado. Cuidado, close e corre pautaram nosso cotidiano de norte a sul. Seja em diferentes “inferninhos” undergrounds ou mesmo ocupando subversivamente a pista de grandes estabelecimentos GGG. A gente causou, conectou pessoas, coletivos, coletividades, criamos circuitos. Desobedecemos a ordem racista, cisheteronormativa, patriarcal – seja ela vinda da direita ou da esquerda. Hackeamos, dentro das nossas condições de fudidas, o capitalismo. Nós estávamos nos levantando com toda força que nos é peculiar – pois nossos passos caminham pela terra pisada por quem veio antes de nós, de longe e que de nós tem todo reconhecimento.

Tudo, de repente, se foi. Ou melhor, tornou-se mediado pelas mídias digitais. Aquelas mesmas que nós usamos um dia para nos conectar, nos comunicar, nos reconhecer. Elas, por onde conhecemos melhor umas às outras, onde nos formamos na Universidade do Textão, por onde nos mobilizamos às ruas, por onde nos organizamos coletivamente, por onde passamos a disputar a visibilidade de um conjunto de emergências às nossas vidas – seja por memes, seja jogando de qualquer outra forma o nosso corpo no mundo.

A distribuição de coração e seguidores no Instagram pode até ter ajudado a aumentar o lucro do capital transnacional. Mas e sobre nós? 05 meses postando conteúdos. 05 meses sem transformar corações em recursos que sejam suficientes para a nossa sobrevivência mínima.

Antes do fim do primeiro mês de isolamento já se podia notar que essa realidade recortava um conjunto amplo de pessoas do setor cultural em todo país. Muitas de nós encerraram suas estadias em outras cidades e retornaram para as casas de pais, mães e parentes com quem, nem sempre, tivemos uma relação harmoniosa. Muitas adoeceram. Outras tantas seguem adoecendo. Algumas de COVID-19. A imensa maioria de desesperança.

Muitas, mesmo adoecidas, não pararam de produzir. Nos últimos 05 meses, um conjunto amplo de artistas, produtoras e coletivos culturais ocupou as mídias digitais. Se jogou nos incontáveis formulários de inscrição de editais cujos recursos públicos ou privados, quase sempre, terminaram contemplando as mesmas pessoas e grupos que há tempos, por meio deles, sobreviveram. Nada contra, tudo a favor. Mas, como aprenderíamos em tempo record a organizar nossas produções em forma e conteúdo para caber nos mais de 10, 15 ou 20 tipos diferentes de formulários e modelos seletivos, promovidos pelo Estado, pelo capital local ou transnacional?

O trânsito à virtualidade não tem sido trajeto tão fácil e cheio de flores. A imensa maioria de nós está há 05 meses produzindo sem conseguir monetizar nem um centavo sobre isso. A conta volta a não fechar. Pior, fecha vermelho há meses. Os boletos não param de chegar. O aluguel já vai vencer outra vez. Os auxílios emergenciais públicos nos deixaram em espera o tempo máximo que puderam – tava feio demais manter em análise tanta gente fudida junto né? Aprovado, caiu um mês, caiu o segundo e disseram em Julho que a terceira parcela era só em Setembro. Agosto, do desgosto.

Mesmo assim, tome lives, shows, festivais, videoconferência, editais, semestre suplementar e tudo mais. Estamos tentando nos jogar. Localmente ou nacionalmente. Loucamente ou serenamente. Até onde groovar… Onde teve uma convocatória ou chamada aberta, lá estávamos. Entregamos nossos dados e nossas produções sabemos lá a quem. Quando a desesperança bate a porta com tanta força, não tem filtro que segure, fia… É treva, é nada.

Poucas de nós, muito poucas, conseguiram alcançar recursos privados. É muito pouco e sempre será muito pouco, frente a dívida que o capital transnacional – de onde todo o poder colonial emana – tem conosco. A Apple lucro três trilhões durante a pandemia! E as marcas de bebidas alcoolícas? As cotas de patrocínios seguiram para as mesmas pessoas e marcas, mediadas pelas mesmas produtoras e grupos. Tudo como antes, no quartel de… Outra conta chega por debaixo da porta. Mais uma vez, nada contra, tudo a favor de quem tem recebido. Mas e o restante de nós? Aguarda… Como se na espera do auxílio emergencial. O aluguel vai vencer outra vez. O jogo que já era duro, tornou-se bruto.

A verdade é que nós estamos devastadas. Falta perspectiva, horizonte, esperança real, concreta, que caia na conta e continue caindo o tempo que dure este quadro pelo qual estamos passando. No subjetivo ou no racional, no individual ou nos coletivos. Muitas de nós já está sem rumo e sem prumo, tentando sobreviver não mais de alguma, mas de qualquer forma. Dói. O TITANIC tá afundando e ainda há no salão gente segurando suas taças. Nós? Nós estamos trancadas, mesmo sabendo que não há botes para todas. A única certeza que temos é que nós seremos as últimas a alcançar o que sobrar deles.

A pandemia rasgou carnes e levou vidas. Seja pelo coronavírus, seja pela tristeza. Ela fez escorrer muitas lágrimas. Gerou muitas dores e marcas. O nosso Pantanal em chamas e o nosso governante federal nos tirando como piada. É chegada a hora de nos reinventar. Com o que sobrou de nós depois de 05 já quase 06 meses. Dilaceradas, nos refaremos como uma grande colcha de retalhos!

No dia 25 e 26 de setembro, próxima sexta e sábado, das 16h20 as 20h20 nós vamos realizar a Pre Conferência Popular de Cultura Fora do Armário [2]. Queremos nos cuidar, nos ver, nos encontrar, nos reconhecer… Voltar a tramar a emergência do outro mundo possível… mesmo que você me negue.

Temos, em algum canto distante, uma certeza de que dias melhores virão e de que nós somos aquelas que escolheram, mais uma vez, sobreviver!

Seguiremos caminhando… mirando no bem viver! Até que todas sejamos livres!

[1] virginiana, 32 anos, mestranda do PPGNEIM-UFBA, pesquisadora da Feminaria Musical e membro da Plataforma Fervo2k20.
[2] Inscrições pra a Pre Conferência Popular de Cultura Fora do Armario no bit.ly/conpopforadoarmario

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