Os debates e a mobilização contra o racismo têm atingido uma visibilidade rara – ainda que somente sejam assim propagados após a morte de George Floyd, nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o número de denúncias de racismo também aumenta. Dessa observação, pergunta-se: a sociedade está menos tolerante em relação ao crime de racismo ou, ao contrário, está ainda mais violenta e agressiva? É muito possível que ambos fenômenos estejam acontecendo simultaneamente e, embora sejam diametralmente opostos, podem ser causados pelos mesmos fatores.  

As duas últimas décadas foram marcadas por um processo de ascensão da população negra do Brasil. Entretanto, na perspectiva da distribuição de recursos econômicos, a redução de desigualdades foi tímida e já enfrenta retrocessos. A diferença salarial entre brancos e negros voltou a aumentar: em 2016, o rendimento de pessoas negras era em média o equivalente a 57% do que recebiam os brancos. Em 2017, a renda proporcional das pessoas negras caiu para 53%, segundo dados do IBGE analisados pela Oxfam. 

Porém, sob outras perspectivas podemos ver avanços dos movimentos negros no país. Entre os mais importantes, podemos apontar a luta pela educação, com a conquista das cotas raciais no ensino superior, e a auto-organização em torno de cursinhos populares, por exemplo. Essa mudança, para além de um início de democratização das universidades públicas, marca a emergência de uma geração que se utiliza dos conhecimentos obtidos nesses espaços em aliança com nossos saberes ancestrais para pautar o combate ao racismo em todos os âmbitos. Em especial, as jovens mulheres negras vêm aliando o uso da internet com nossas tecnologias cotidianas de troca e aprendizado. Isso não pode ser arrancado de nós, por mais que tentem. 

Resultado de uma luta histórica, temos jovens que não aceitam passivamente o preconceito e que recorrem a essas tecnologias para enfrentá-lo. Nos episódios recentes de crime de racismo dos dois Matheus entregadores de encomendas, nota-se que em um deles foi um jovem negro que fez a filmagem, no outro, a denúncia foi feita por uma mulher, a mãe do agredido. E em ambas as gravações, ouve-se gritos como “filma, filma” e “larga o menino”. São exemplos dessa atitude altiva, capaz de levar ao rompimento do silêncio e à efetivação da denúncia. 

É evidente que, ao fazer isso, nós incomodamos. Esse processo crescente de resistência e de luta por direitos por parte da população negra desperta nas elites brancas e detentoras do capital uma resposta violenta e criminosa. Essa reação tem um pilar no racismo institucionalizado nos aparelhos estatais,  e não há como não destacar as forças repressivas policiais neste contexto de violência. Isso com o silêncio, quando não apoio explícito, de ditos “cidadãos de bem”. Como diz Carlos Moore, essa dominação se apoia tanto nas estruturas quanto nas subjetividades, por meio da assimilação de estereótipos que associam os negros à sujeira, à violência, ao perigo. Esse “perigo” ganha uma camada com o medo da perda de espaços de poder, sejam econômicos ou sociais, por parte das classes médias média e alta, fruto de uma miopia social, embasada na defesa da organização heteronormativa (patriarcal, racista, patrimonialista e neoliberal). 

Esse posicionamento impede a classe média de enxergar a verdadeira distância entre ela e a elite e entre ela e a pobreza. Ainda há a questão da reestruturação econômica, que intensifica o avanço permanente sobre nossos corpos – mesmo aqueles de pele mais clara como no caso dos Matheus –  e territórios, e que, ao se deslocar para o ultraliberalismo, busca depender cada vez menos do trabalho humano. Em outras palavras, a elite aplica a necropolítica, uma vez que avalia que a população pobre e negra é cada vez mais desnecessária como mão de obra e mercado consumidor e, portanto, é mais fácil deixá-la morrer do que incluí-la nos processos produtivos.

Em resumo, esses episódios somente escancaram as escolhas que a sociedade ocidental tem pela frente. Em uma via, a luta pela vida de todos em sua plenitude de direitos e, em outra, a sobrevivência exclusiva, luxuosa e insustentável dos escolhidos pelo sistema.

 

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