A vida é feita de ciclos e tão importante como começar algo, é mais urgente ainda finalizar ciclos viciosos que aprisionam nossa consciência. Hoje me sinto pronto e preparado para quebrar todas as correntes que nos escravizaram em algum grau.

Eu nasci Flávio de Abreu Lourenço. Nome que carrega a preposição “de” e portanto ganha contornos escravocratas. Estudos históricos mostram que algumas preposições teriam papel de marcar nossa pele como se fôssemos gado de propriedade de alguém. Era essa a maneira que o senhor de engenho, os fazendeiros e coronéis, do alto da sua arrogância protegida por todo o conforto e privilégio da casa grande, utilizavam para “marcar” os escravizados de África como vossas propriedades. Roubavam do negro escravizado, além da sua liberdade, dignidade e toda sorte de direitos, também o seu nome e davam-lhe outro, seguido das preposições “de”, “da”, “dos”, cicatriz que até hoje nos acompanha para de alguma forma tentar nos convencer que a liberdade não é para nós.

Eu sempre refutei as correntes psicológicas que isso me trouxe e para seguir quebrando os elos dessa corrente invisível, escravocrata, iniciei a minha autocura, meu processo de libertação. Foi nesse momento que a vida me batizou e renasci Renegado. Flávio Renegado.

Esse foi um dos principais gatilhos para minha mudança interna. Perceba que a palavra “gatilho” pronunciada por um homem negro, pode significar uma sentença injusta.

De certo, o tal “gatilho” estartou meu processo de desconstrução e descolonização e confesso; em alguns momentos me perdi pelo caminho, enebriado por uma falsa sensação de acolhimento e pertencimento. Foram as armadilhas criadas por um sistema cruel, que há 530 anos coloniza e escraviza mulheres pretas e homens pretos.

Veja bem. Esse manifesto não pretende propor o apartheid, pois nós pret@s somos parte desse lugar, dessa terra, desse país e exigimos que essa nação nos reconheça e nos respeite como filhos desse solo.

Reconheço a política como forma de organização para mudar o quadro torpe do preconceito, do racismo estrutural e da discriminação social que em pleno século 21 ainda faz mais vítimas que qualquer pandemia viral. Sinceramente, o modelo político atual praticado no Brasil não me representa.

Motivado por isso, escrevo esse manifesto, minha carta aberta, solicitando o meu desligamento do PcdoB, partido que ajudou a formar minha consciência política, onde vivi momentos intensos, importantes e sou filiado desde os 16 anos. Partido pelo qual tenho imenso carinho, onde conheci e reconheci pessoas fantásticas que fazem parte da minha caminhada.

Minha desfiliação não é motivada por discordar das lutas e pautas do partido. Ao contrário. Sigo firme e cada vez mais focado nas lutas e pautas identitárias em defesa dos direitos dos grupos socialmente mais vulneráveis, tais como; mulheres, pretos, homossexuais, transexuais, trabalhadores e camadas de baixa renda. Porém, hoje, mais maduro, tenho a consciência do meu lugar de ação e não posso me esquivar de agir, do meu papel de contribuição social, sendo este ou não, o meu lugar de fala. O meu papel de agente político, além da arte e em colaboração mútua, não pode ser tolhido ou dependente de nenhuma parte.

Imagino que haja militantes que poderão discordar da minha decisão e portanto lembro a tod@s. A democracia é o regime político do nosso país, eu respeito seu pensamento, portanto, respeite a minha posição. A partir de hoje o meu partido é a Mulher Preta, seja ela filiada a qual partido político for e para isso preciso ser livre de qualquer sigla ou preposição. Você pode discordar. Só não poderá me impedir, como um cativo.

O debate aqui não é sobre partidos de esquerda, de direita ou de centro.

Trata-se de justiça social e compensação histórica. Nós, Pret@s, ainda somos preteridos nos ambientes político-partidários e quase nunca ocupamos acentos nas cúpulas responsáveis pelas tomadas de decisão. Não somos nem considerados nas eleições para cargos de presidência ou liderança. O preto é lembrado quando surge a necessidade de “democratizar” e dar a falsa sensação de inclusão, como em grupos de whatsapp, nas reuniões de convenção partidária, etc, para dar a falsa e falha sensação de democracia racial, o que nos ilude e nos mantém inertes na esperança de alguma evolução conquistada. Somos lembrados e considerados quando é necessário “organizar” o movimento negro ou fazer algum tipo de mobilização nas comunidades periféricas, cujo intuito final, mais íntimo é sempre o benefício aos homens brancos dententores do poder há séculos.

Não promovo um motim racial com esse manifesto e quero explicitar que não tenho objetivo de me lançar em carreira política. Sou artista, militante pelas lutas sociais em que acredito, mas preciso manifestar meu descontentamento e indignação por nossa condição social e política.

É uma agressão não dar atenção para o fato de não haver acolhimento para @s pret@s em ambientes políticos onde não somos representados na maioria das vezes, cujo espaço ocupado por nós é infinitamente menor em comparação ao espaço ocupado por não-negros e totalmente desproporcional em relação a nossa capacidade intelectual.

Na luta e lutando com as armas que posso, afirmo! Continuo meu processo de amadurecimento e descolonização e como homem preto e em desconstrução, enxergo por um prisma mais sensível, que temos que cuidar com esmero da parte mais vulnerável e desprivilegiada de nossa pirâmide social, ao meu ver, a mulher preta.

Quando todas as mulheres pretas receberem o devido respeito, o justo espaço e o acolhimento necessário, aumentarão as chances de realizarmos o sonho de nação mais justa e democrática.

Minha carta não fala em nome das mulheres pretas. Esse não é o meu lugar de fala. Esse é o meu lugar de ação pretendendo ser par das mulheres pretas nessa luta.

Por tudo isso, a partir desse momento, disponibilizo as ferramentas que tenho, como minha caneta de compositor, minha influência com os que gostam da minha arte e minhas redes sociais, para difundir e apoiar prioritariamente as candidaturas de mulheres pretas, sem que haja seleção partidária. Basta que a candidata cumpra com os requisitos morais para concorrer a um mandato político, com base na lei da ficha limpa e que suas bandeiras se alinhem com as lutas e batalhas sociais que travo e apoio, tais como, a principal delas, a luta antirracista e também a luta contra a violência doméstica e familiar que sofrem as mulheres, a luta contra a homofobia e a luta contra a injustiça social sofrida em especial por moradores das favelas, periferias e comunidades brasileiras.

Mantenho-me na luta, me conhecendo mais e amando cada vez mais a mim e minhas origens ancestrais.

Rio de Janeiro, 31 de Agosto de 2020.

Flávio Renegado, filho do rei.

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