A palavra “genocídio” tem sido pronunciada com frequência nesses dias. O pano de fundo é a pandemia do covid-19. Mas seria vã a sua atribuição a um vírus, supostamente desprovido de intenção. Então, a palavra tem sido associada à omissão deliberada ou à inépcia do governo, ou do presidente, no combate à sua disseminação.

É difícil imaginar um incômodo maior do que ser tachado de genocida. É mais do que assassino, ou serial killer. O genocídio é um crime especialmente grave, que atenta contra a humanidade. Não espanta, portanto, a reação indignada – e ameaçadora – de autoridades que se sentem ofendidas com tais acusações.

Botando a bola no chão, o dicionário ensina que genocídio é o “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso”. O caso emblemático é o do assassinato em massa de judeus pelos nazistas. O dicionário autoriza a extensão da sua aplicação à “destruição de populações ou povos”.

A pandemia chegou ao Brasil após contaminar outros países orientais e europeus, o que deu um tempo a mais aos governantes daqui e, especialmente, lhes permitiu considerar outras experiências, além das orientações das agências sanitárias, para fazerem as melhores escolhas e minimizar o seu impacto sobre quem aqui vive.

Porém, após quatro meses, a epidemia já atingiu mais de dois milhões de brasileiros, com mais de 80 mil vítimas fatais. Somente os Estados Unidos mantém pior resultado até aqui, com importantes fatores em comum com o Brasil, como a displicência e a falta de liderança presidencial no enfrentamento ao vírus, a diversidade de orientações nos estados, associada à suspensão prematura de medidas de isolamento social, resultando num prolongamento da curva epidêmica com um número maior de vítimas.

Não foi o governo brasileiro que inventou a epidemia e não se tem conhecimento de ação intencional do governo para espalhar o vírus ou infectar grupos específicos. Mas a escandalosa quantidade de vítimas comprova o caráter errático das ações e omissões do governo, a que se soma a postura negligente quanto à gravidade da doença.

Mais grave ainda tem sido a atitude do presidente. Agora, menos, já que se encontra isolado para tratamento após ter sido constatada a sua própria contaminação. Mas deu inúmeras declarações erradas e irresponsáveis, promoveu concentrações de pessoas e deu o mal exemplo de comportamento recusando o uso de máscaras e o distanciamento pessoal exigido para evitar contaminação.

Pior: demitiu dois ministros da Saúde e mantém o ministério em interinidade contínua, sob intervenção militar branca. Tudo isso em plena pandemia. O presidente obrigou o interino de plantão a editar um protocolo recomendando o uso da cloroquina em todas as fases do tratamento da doença, mesmo sabendo que não há comprovação científica da sua eficácia e, pelo contrário, havendo vários estudos que concluem pela ineficácia.

Se o governo é errático e negligente, o presidente acrescenta a isso uma intencionalidade teimosa que, a pretexto de afirmar a sua autoridade, boicota as recomendações sanitárias, confunde a população e, objetivamente, provoca o aumento de vítimas e da duração do surto epidêmico. Não há como afirmar que o presidente teve a intenção de matar aquelas pessoas específicas, mas não há como negar os efeitos letais dos seus atos e palavras.

Outro elemento agravante é a recusa pelo governo e pelo presidente em adotar programas emergenciais apropriados e consistentes para mitigar o impacto da epidemia sobre grupos sociais mais vulneráveis, como povos indígenas e comunidades negras, entre as quais se tem observado o dobro da letalidade média da população. O Congresso Nacional supriu essa omissão aprovando a lei 14.021/20, mas o presidente a desfigurou com 16 vetos, que ainda serão objeto de decisão final pelos congressistas.

O Supremo Tribunal Federal também pressiona o governo no mesmo sentido. Concedeu liminar parcial em ação impetrada pela APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – com o apoio de seis partidos da oposição para obrigar o governo a instalar barreiras de proteção às áreas ocupadas por índios isolados, além de um gabinete de crise, com a participação da APIB, para monitorar a evolução da epidemia entre os índios em geral.

É inédita a circunstância do Legislativo se somar ao Judiciário para obrigar o Executivo a tomar providência frente a uma ameaça letal e concreta a esses povos. Há omissão militante do governo e, portanto, uma intencionalidade potencialmente criminosa. Se não for racismo, é abuso de autoridade com alto custo humanitário. Nem o caráter eletivo do mandato presidencial, nem o exercício legal do poder autorizam essa postura.

A pauta da primeira reunião do gabinete de crise, decorrente da liminar do STF, seria a instalação de barreiras de proteção aos índios isolados. Mas o destaque ficou por conta das ameaças feitas por autoridades de governo de processar em juízo os líderes da APIB que se refiram ao governo e às suas políticas como genocidas. Os militares estão muito ouriçados com a associação da imagem do Exército com a crise sanitária, cristalizada pela direção militar dada ao ministério da Saúde e que vem sendo qualificada como tal até por ministros do STF.

Erro, descaso, negligência, abuso de autoridade, recusa de cuidados específicos a populações vulneráveis, retaliação a quem acusar genocídio, tudo isso num ambiente com mais de mil mortos por dia. É a postura do governo que denuncia uma escalada rumo ao conceito. As autoridades reagem de forma muito mais incisiva à qualificação do que à gravidade dos fatos que a ensejam. Deveriam tratar, com urgência, de reverter a situação que nos obriga a discutir se o seu nome é genocídio, ou não.

No rumo em que estamos, o governo vai ter que assumir as suas graves responsabilidades. Com apenas um ano e meio de mandato, o presidente já está sujeito a ter que responder, além de processos judiciais e de impeachment, a acusações formais junto a tribunais internacionais. Claro que, nesse mundo, o que não falta é violência e tragédia, e que as maldades do governo brasileiro seriam consideradas à luz de nefastos padrões. Mas o trâmite de uma denúncia nessas instâncias já é, por si só, vergonhosa e humilhante para um país de tradições democráticas como o Brasil.

Segundo o advogado argentino Luís Moreno Ocampo, primeiro promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), “a lei diz que crimes contra a humanidade pressupõem que tenha ocorrido uma política para cometer um ataque de larga escala ou sistemático. Precisa ter tido um plano. Isso precisa ser provado. É uma situação muito excepcional”. Sylvia Steiner, a única brasileira que já integrou o TPI, acha que, apesar da política desastrosa do presidente, é improvável que a Corte de Haia acolha uma denúncia contra ele, pois ela tem julgado apenas casos que envolvem conflitos armados e violência física contra a população. Para denunciar a política sanitária, uma alternativa seria acusar o Brasil junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), responsabilizando o presidente.

Na última segunda-feira (20), a CIDH concedeu uma liminar acolhendo um pedido da Hutukara Associação Yanomami e do CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos), feito em 16 de junho, para que o governo brasileiro seja instado a promover a retirada de todos os garimpeiros que operam ilegalmente na Terra Indígena Yanomami, entre outras medidas necessárias para impedir o alastramento da Covid-19. Não se trata de uma acusação de genocídio e, sim, de uma solicitação específica. A liminar do CIDH pode até ser ignorada pelo governo brasileiro, mas a atitude que ele tomar diante dessa recomendação constituirá um histórico que poderá se desdobrar em decisões mais graves no futuro.

Qualquer que seja o tribunal e a tipificação dos crimes, a circunstância do país ter que encarar uma inédita condenação em âmbito internacional, afetaria ainda mais a sua imagem, que já está profundamente desgastada. Além de vergonhosa para a nação, só prejudicaria esforços para obter apoio político, construir parcerias e atrair investimentos externos que ajudem a resgatá-la dessa crise múltipla e profunda em que foi criminosamente atirada.

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