“Com shoppings vazios, comerciantes abrem lojas para faturar R$ 50 por dia”, foi uma das reportagens do jornal “O Estado de S. Paulo” no último domingo, dia 12. No UOL, “Restaurantes tradicionais têm baixa ocupação em São Paulo”. Ainda que as matérias tenham reportado apenas alguns shoppings ou poucos ramos do comércio ou apenas uma cidade – e portanto não possam ser consideradas retrato dos respectivos setores comerciais, fato é que evidenciam um problema complexo no cenário de suposto retorno da atividade econômica.

Tornaram-se rotineiras, também, notícias sobre os transtornos que milhões de brasileiros enfrentam em filas presenciais ou virtuais da Caixa para sacar o auxílio emergencial de R$ 600, assim como os inúmeros obstáculos com que pequenos empresários ou microempreendedores individuais se defrontam para obterem crédito bancário das linhas aprovadas para socorrer empresas afetadas pela crise da pandemia. As linhas de crédito deveriam estar disponíveis nos bancos públicos, sobretudo no BNDES, não nos bancos privados, que pouco se importam se o empresário está impossibilitado de oferecer as garantias burocrático-administrativas para empréstimos ou financiamentos.

É compreensível que os empresários queiram retomar a atividade econômica, afinal, o setor privado, que já estava esgotado financeiramente antes da pandemia, desde março está com a grande maioria das empresas praticamente paralisada, perdeu faturamento, se descapitalizou, teve de demitir funcionários ou no mínimo reduzir jornada – com consequente redução de salários. Essa é uma realidade inegável, e não apenas no Brasil. Entretanto, a renda das famílias também entrou em colapso. Apenas uma ínfima parcela tem dinheiro para compras que não sejam alimentação e remédios. E milhões de cidadãos nem isso conseguem.

É natural, também, que as pessoas fiquem impacientes e estressadas dentro de casa e queiram sair, trabalhar, se divertir, visitar amigos e familiares, viajar, etc. Após mais de uma centena de dias em isolamento, a saúde mental começa a ficar abalada. Por isso, quando se falava em conter a covid-19 e seus efeitos, além de ter faltado uma estratégia de testagem, rastreamento e isolamento de casos, tornava-se imperativo um plano bem estruturado, para começo, meio e fim da quarentena, sob um comando central, sem margens a dubiedade, com orientações claras e regras bem delimitadas. Regras que, obviamente, respeitassem princípios científicos e humanitários, para que a saúde coletiva estivesse em primeiro lugar e para que as restrições durassem o mínimo de tempo.

Entretanto, desde o início o Brasil não tem comando único no combate ao novo coronavírus. Não por desinteresse das autoridades locais ou porque nos falte capacidade técnico-científica. Não. Nosso país tem inteligência epidemiológica para lidar com a pandemia, porque já lidamos com outras epidemias e emergências em saúde pública que também eram desconhecidas e significavam desafios à nossa ciência e ao nosso sistema de saúde, como no caso do HIV/Aids, época em que a resposta brasileira foi tão satisfatória a ponto de ser celebrada como a melhor resposta pública em todo o mundo. Resultado da sinergia entre governo, pesquisadores e sociedade. Portanto, não nos falta know-how para responder adequadamente a crises de saúde de grandes proporções.

Falta governo. Falta a liderança do governo federal, que, ao invés disso, tornou-se a causa maior do descontrole que nos envergonha mundo afora, porque não só deixou de cumprir sua obrigação como sabotou medidas adotadas pelos governos estaduais e municipais, que precisaram de uma decisão do Supremo Tribunal Federal para garantir que pudessem exercer sua competência no enfrentamento à doença sem serem atrapalhados por Bolsonaro. É o cúmulo! Em todos os países que conduziram com seriedade a crise sanitária, a liderança coube ao governo central, articulando governos locais, autoridades de saúde, universidades, centros de pesquisa, os meios de comunicação e a sociedade.

Aqui, ao contrário, o país não teve plano coordenado para entrar no isolamento e não o tem para sair dele – daquilo que restou do distanciamento registrado nas semanas iniciais. Mais uma vez, fica a cargo das esferas estaduais e municipais adotarem medidas conforme critérios próprios, em alguns casos conforme a intensidade da pressão político-econômica de grupos de interesse. O desgoverno prefere encarar a epidemia com desdém, descumpre protocolos, desrespeita o sofrimento de milhares de famílias, se exime de responsabilidades e aumenta a crise. Mais que isso, cria crises onde não existem, induz a população a erros e faz lobby de medicamentos sem eficácia comprovada para tratamento da covid-19. O governo Bolsonaro, que está há quase dois meses sem ministro titular da Saúde, é uma tragédia à parte para quem precisa lidar com os terríveis impactos da doença.

E é preciso ter em mente que a retomada econômica é um lado da moeda. Olhemos para o outro lado. Com as escolas e as creches fechadas, quem vai cuidar das crianças para as mães e os pais voltarem ao trabalho? E quem vai dissipar o risco de os adultos transportarem o vírus e contaminarem os idosos ou outros familiares que residem na mesma casa? Como se sabe, milhões de brasileiros compartilham moradias com avós, sogros, tios e outros parentes mais velhos ou que têm comorbidades, que assim ficam expostos ao perigo.

Vários países que haviam relaxado o isolamento estão revendo a decisão, porque em poucos dias ou semanas o contágio voltou a subir. Nos Estados Unidos, cuja postura errática do presidente inspira o comportamento irresponsável – para não dizer criminoso – do presidente brasileiro, governantes estaduais avaliam a hipótese de decretar nova quarentena e fechar novamente a economia. Se até em países mais homogêneos em termos sociais, geográficos, climáticos e econômicos, como na Europa, e nos quais existe ação centralizada dos níveis de governo durante a crise, a retomada está ocorrendo aos solavancos e com reveses, que dizer do Brasil? Aqui também há muitas cidades e estados que voltaram atrás na flexibilização devido ao surgimento de novos casos.

O vírus não está sob controle, até porque mil óbitos por dia não é estabilização. Mais de 72 mil mortes e quase 2 milhões de casos confirmados, sem falar da subnotificação, deveria ser motivo de preocupação de todos nós, como nação, desde o presidente da República até cada um dos 210 milhões de brasileiros e brasileiras que precisam zelar por sua saúde física e emocional. Saibamos que “voltar ao normal” não é abrir loja, restaurante e academia, é parar de morrer gente.

Na prática, a “normalidade” só será retomada quando a saúde coletiva for resolvida, de modo que as pessoas se sintam confiantes em sair à rua e voltar ao trabalho sem medo de contágio, com todos os protocolos assegurados e com o devido cumprimento das responsabilidades dos governos, das empresas e dos indivíduos. Afinal, o que prejudica a economia e subtrai a vida é o vírus, não o distanciamento social – este, por ora, é a melhor forma de prevenção, até que os nossos cientistas concluam as pesquisas para a vacina contra a covid-19. Enquanto isso, no cenário de um Brasil menos desumano, esta seria a hora de o Estado se mostrar forte, firme e ágil para assegurar uma renda digna às famílias e preservar a saúde financeira das empresas, inclusive porque tem respaldo do Congresso Nacional para isso. Porém, sob o neofascismo bolsonarista, esta não é uma alternativa.

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