Foto: Edgar Azevedo / Via Afrobapho

Por Alan Costa

Discutir sobre afetividades negras configura-se como um elemento importante no processo de descolonização do pensamento e, sobretudo, de resgate à humanidade que nos foi negada em séculos de escravidão. Afinal, durante o período de colonização, a branquitude não apenas aprisionou e escravizou corpos negros, como também destruiu suas subjetividades e afeições, dando lugar às construções racistas e estereotipadas.

Em seu texto intitulado “Vivendo de Amor”, bell hooks (teórica feminista e crítica cultural) pontua sobre o impacto da escravidão no modo como foram estabelecidas e construídas as relações afetivas entre/de pessoas negras. Segundo a autora, “o sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual […] havendo a necessidade de reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar”. Dessa forma, as violências físicas e simbólicas do período colonial deixaram uma grande lacuna no que se refere à autoestima, autocuidado e afetividades do povo negro.

A dinâmica de afetividade na vida das bichas pretas estrutura-se em questões que interseccionam raça e sexualidade. Além de enfrentarem a imposição ideológica de uma masculinidade viril e objetificadora – construída pelo racismo -, lidam também com a noção heteronormativa, que enxergam as suas relações como apenas lascivas e sexuais – desprovidas de sentimentos. Isso fica ainda mais tensionado, quando a performance de feminilidade é mais latente, fugindo do que o padrão hegemônico nos engendra.

Ora objeto: de uma virilidade imponente a uma execução insaciável; de um pau grande a uma hipermasculinidade indomável. É isso que esperam do homem negro heterossexual e também do homem negro gay. Que seja o macho, que seja o ativo. Se for passivo? Que seja discreto. Que seja o fetiche, que seja o brinquedo. Esses estereótipos projetam um modelo fixo de masculinidade negra, como se fôssemos produtos em série, de uma fábrica da branquitude. Não se importam com as nossas subjetividades, com nossas particularidades, com nossas várias maneiras de ser e de sentir – isso mesmo – SENTIR! Pois sentimos…

Ora abjeto: se não for viril, se não for dotado, se for afeminado, se não for ativo, se for gordo, quanto mais distante do padrão de beleza… Quando os homens negros gays se afastam dos valores impostos sobre seus corpos, eles passam da condição de objetos para a condição de abjetos. Numa sociedade em que o feminino é violentado, em que as mulheres negras são colocadas no lugar da objetificação e da servidão, ser uma bicha preta afeminada sob o espectro de uma masculinidade hegemônica é tornar-se invisível para as afetividades. É viver em um ciclo de solidão inacabável. Mesmo nos amando o suficiente para entender o quanto somos fabulosas, a rejeição e o preterimento afetivo nos derrubam. Afinal, mesmo que nos neguem a humanidade: SENTIMOS. Nem sempre somos fortes, nem sempre queremos ser.

Numa sociedade em que o feminino é violentado, ser uma bicha preta afeminada sob o espectro de uma masculinidade hegemônica é tornar-se invisível para as afetividades.

Poucas vezes afeto: como diria a minha maior referência na atualidade – Linn da Quebrada–, “ser bicha não é só dar o cu é também poder resistir”. Mas pra resistir, precisamos nos amar, precisamos ser amadas. Precisamos de afeto. Por mais que o texto “Vivendo de amor” de bell hooks seja endereçado principalmente para as mulheres negras, não há como não se identificar com as suas palavras, que de alguma forma representam experiências que nós bichas pretas afeminadas vivenciamos.

Quando hooks fala que “muitos negros, e especialmente as mulheres negras, se acostumaram a não ser amados e a se proteger da dor que isso causa, agindo como se somente as pessoas brancas ou outros ingênuos esperassem receber amor”, rapidamente lembro-me das conversas que tive com outras bichas pretas sobre solidão e preterimento, lembro-me que além de todos os obstáculos bloqueando nossas afetividades, também lidamos com a visão romântica brancocêntrica. E talvez por isso, temos falado muito de solidão, mas não temos amado tanto os outros solitários. Vamos trocar afeto entre nós.

Embora seja um processo complexo, precisamos nos desconstruir também. Precisamos romper com o controle da branquitude sobre nossas subjetividades. Precisamos nos amar, precisamos de afeto entre nós.

“Numa sociedade racista, capitalista e patriarcal, os negros não recebem muito amor. E é importante para nós que estamos passando por um processo de descolonização, perceber como outras pessoas negras respondem ao sentir nosso carinho e amor”. (bell hooks)

Alan Costa é baiano, formado em Letras Vernáculas, idealizador do coletivo Afrobapho e mobilizador social da campanha “Jovem Negro Vivo” da Anistia Internacional.

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