Quando resolvemos apoiar revoltas externas, precisamos ser empáticos. Mas como se constrói a empatia internacional? Movimentos que nos antecederam descobriram que, para articular lutas pelo mundo, é preciso identificar um inimigo comum.

Foto: Apu Gomes, em Califórnia

Se eu fosse o Irã ou a Venezuela, faria exatamente o que sugeriu o professor, escritor e ativista negro Gerald Horne: criaria imediatamente comitês de solidariedade ao povo negro dos Estados Unidos e apresentaria uma queixa contra os abusos de direitos humanos perpetrados pelas forças de segurança dos Estados Unidos em Washington.

“Ué, mas o povo iraniano está sofrendo com muito mais intensidade e há muito mais tempo do que os estadunidenses”; “ué, mas a Venezuela está passando fome por causa das sanções impostas justamente pelos Estados Unidos”. Este tipo de questionamento pode surgir. E ele tem similaridade com um outro que tenho visto por aqui: “gente preta morre muito mais aqui do que nos Estados Unidos, até pra se revoltar a gente é colonizado”.

Nada disso é exatamente mentira. Mas são questionamentos míopes, que perdem de vista a questão central: solidarizar-se com os oprimidos do coração do império é estratégico. Como já escrevi anteriormente, erramos ao moralizar ou essencializar a empatia. Temos empatia com uns e não com outros porque a empatia se constrói socialmente, culturalmente, e é conduzida pela mão pesada da classe dominante. Crescemos debaixo da bota da máquina goebbeliana de propaganda de Hollywood e suas derivações coloniais como a TV Globo no caso do Brasil – e isso é determinante para a formação psicológica de qual sofrimento nos afeta ou deixa de afetar. Como George Floyd, não pudemos respirar.

O pouco ar que tragamos estava contaminado de uma ideologia que hierarquiza seres humanos. WASPs (White-anglo-saxon-protestants, ou brancos protestantes anglo-saxões) estão no topo da cadeia alimentar dessa construção ideológica. E – num incrível mas não fortuito paralelo entre o construto racial nazista e a ideologia do excepcionalismo dos EUA –, desce toda uma escala de gente a partir daí: homens brancos da Europa Ocidental, mulheres brancas protestantes etc., até chegar na transexual negra, no muçulmano.

Bombardeados por essa construção, sofremos genuinamente pelas vítimas brancas do jihadismo wahabista em Paris, mas não pelas (mais numerosas) vítimas pretas do jihadismo wahabista em Mogadíscio. Nesta escala, vemos o preto nos Estados Unidos como mais digno de viver do que o preto no Brasil. É uma imposição ideológica e não devemos encará-la sob a ótica da culpa cristã. Se fizermos isso, simplesmente inverteremos a hierarquia do sofrimento digno de empatia, ao invés de acabar com ela. É o que faz o argumento “gente preta morre muito mais aqui do que nos Estados Unidos”. Ele não é irrelevante nem falso; só não é estratégico.

Mas ainda que nos limpássemos da ideologia e pudéssemos inspirar um ar puro de empatia universal, ainda estaríamos numa chave de solidariedade moral. A questão que quero discutir é: por que é estratégico se solidarizar com os oprimidos no coração do império?

Pânico vermelho contra internacionalização da resistência

Porque o establishment imperialista dos Estados Unidos faz de tudo para evitar essa solidariedade pelo menos desde o chamado Red Scare (Pânico Vermelho), considerado a primeira onda de expurgo anticomunista oficial empreendida por Washington entre 1917 e 1920. Criminalizar, desmoralizar e finalmente aniquilar o pensamento e a prática da igualdade era mais do que uma arma para a manutenção do status quo interno. Era uma estratégia imperialista aplicada de dentro para fora; uma forma de cortar as linhas de comunicação solidária entre quem sofre na “Terra das Oportunidades” e quem sofre em todas as outras terras súditas, cujas oportunidades eram tosadas pelo próprio império.

Destruindo a possibilidade de o sofredor intrafronteiras compadecer com o sofredor estrangeiro, o império bloqueava a possibilidade do movimento anticolonial construir uma unidade baseada na identificação estrutural e politização do martírio alheio. Rasgar as linhas intelectuais de construção da solidariedade das vítimas é substituir a solidariedade por um identitarismo essencialista. Alijados de ferramentas de luta que nos permitam enxergar uma opressão ou um opressor comuns, só enxergamos no outro características físicas e culturais superficiais. Não nos resta nada. Afinal, que intersecção cultural ou identitária poderá haver entre um camponês hmong no norte do Vietnã e um operário negro em Chicago?

A ausência de um forte movimento comunista endêmico, capaz de enxergar o povo vietnamita como aliado, foi determinante para que os Estados Unidos pudessem se aventurar no sudeste asiático e, principalmente, sair impune das atrocidades que cometeu por lá – desde massacres indiscriminados em vilarejos civis até uso de armas químicas que até hoje contaminam o solo. Foram os negros nos Estados Unidos que começaram a construir essa identidade de classe, que ultrapassava a ideologia racista do status quo.

Povo preto na vanguarda do internacionalismo

Martin Luther King Jr. foi assassinado por tentar construir internacionalismo anti-imperialista. Exatamente um ano antes de morrer, ele discursou na Igreja Riverside, em Nova York: “Se a alma da América se envenenar por completo, parte da autópsia precisa investigar o Vietnã. Ela jamais poderá ser salva, enquanto for responsável pela destruição das mais profundas esperanças da humanidade ao redor do mundo. […] Para mim, a relação deste ministério com a construção da paz é tão óbvia que, por vezes, surpreendo-me com aqueles que me perguntam por que falo contra a guerra. […] Esqueceram-se que minha pregação obedece àquele que amava tanto seus inimigos que morreu por eles? O que posso, então, como fiel seguidor deste homem, dizer ao vietcongue, a Castro ou a Mao? Devo ameaçá-los com a morte ou compartilhar com eles a vida?”

Durante seus últimos 12 meses na Terra, ele pregou a instauração do socialismo e a unidade de classe entre o povo preto nos Estados Unidos e as vítimas do império ao redor do mundo. Hoje, o status quo lembra dele como um herói domesticado, mas no fim da vida, suas palestras vinham sendo canceladas e ele penava financeiramente porque nenhuma editora queria publicar seus livros. A razão? Ele vinha respondendo que a questão da violência ou não-violência tinha se tornado irrelevante. Chave mesmo era a necessidade de superar “guerra, pobreza e negligência” que, para ele, formavam a “estrutura do imperialismo racista” dos Estados Unidos.

Embora a influência de Malcolm X e Frantz Fanon na construção ideológica do Partido dos Panteras Negras seja largamente explorada entre militantes e acadêmicos, pouco se fala dessa linha direta entre a luta anti-imperialista de Luther King e a perspectiva que o líder do partido Huey P. Newton definia como “intercomunalismo revolucionário”. Em texto de 1971, Newton diz que “o povo do mundo forma uma coleção de comunidades, todas dominadas ou controladas direta ou indiretamente, pela meia dúzia que governa os Estados Unidos”. Essa percepção justifica a leitura que os Panteras faziam do gueto como uma colônia e a polícia, consequentemente, como uma força externa de ocupação, um exército imperialista.

Essa formulação colocou o partido no mesmo vocabulário revolucionário das lutas anticoloniais e dos movimentos comunistas no terceiro mundo. Era comum que a liderança do Partido referenciasse táticas de Marighella e Ho Chi Minh ao organizar a autodefesa de uma comunidade negra em Oakland, na Califórnia. Não é à toa que quando a guerra suja contra o Partido dos Panteras Negras se acirrou, nações revolucionárias como Cuba, Argélia, Vietnã e Coreia do Norte imediatamente ofereceram asilo aos combatentes vindos do estômago da besta. Claro que isso não passaria ao largo da repressão. A incipiente criação de uma unidade transnacional de classe fez com que o FBI de J. Edgar Hoover criasse o maior aparato de contra-inteligência já organizado até então. Ele sabia os riscos da construção dessa empatia transnacional baseada numa racionalidade revolucionária comum.

Prova de quanto ela ainda é perigosa é que, meio século depois do auge de sua militância, ainda hoje há membros do Partido encarcerados nos Estados Unidos (Mumia Abu-Jamal, por exemplo, passou mais de 30 anos no corredor da morte). A solidariedade internacional é o calcanhar de Aquiles do império. Sempre se deve construir solidariedade entre oprimidos, independentemente de qual seja o estopim, independentemente do que possamos ganhar ou perder depois. As nossas vidas são tão importantes quanto a de qualquer oprimido. Mas a questão não é quem sofre mais, é como se combate efetivamente aquilo e aqueles que causam o sofrimento de todo mundo.

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Márcio Santilli

‘Caminho do meio’ para a demarcação de Terras Indígenas

NINJA

24 de Março na Argentina: Tristeza não tem fim

Renata Souza

Um março de lutas pelo clima e pela vida do povo negro

Marielle Ramires

Ecoturismo de Novo Airão ensina soluções possíveis para a economia da floresta em pé

Articulação Nacional de Agroecologia

Organizações de mulheres estimulam diversificação de cultivos

Dríade Aguiar

Não existe 'Duna B'

Movimento Sem Terra

O Caso Marielle e a contaminação das instituições do RJ

Andréia de Jesus

Feministas e Antirracistas: a voz da mulher negra periférica

André Menezes

Pega a visão: Um papo com Edi Rock, dos Racionais MC’s

FODA

A potência da Cannabis Medicinal no Sertão do Vale do São Francisco

Movimento Sem Terra

É problema de governo, camarada