Eu tenho condições de passar meses em home office, saindo só uma vez por semana para o supermercado, eu, professora de um cursinho online, com boa internet em casa, um cantinho sossegado de estudo e um computador para dar as minhas aulas, mas o grosso da população (sobretudo os trabalhadores informais, esses que o governo quer chamar de “empreendedores” para não ter que se preocupar com eles) está tendo que decidir entre passar fome ou furar a quarentena. Não sei vocês, mas eu não estou ok com alguém tendo só essas duas opções na mesa, ainda mais quando esse “alguém” é a maioria da população.

Aí junta o fato de termos um presidente que questiona publicamente a importância do isolamento e incentiva o povo a não respeitar as recomendações defendidas por todas as organizações de saúde, mais a continuidade das ações brutais da polícia na periferia mesmo em tempos de quarentena, resultando em despejos e mortes de negros e pobres, sem contar os exércitos de robôs diariamente colocados em funcionamento para impor narrativas e manipular as nossas percepções da realidade.

O país que menos faz testes é também o quarto em número de mortes oficiais, aí faltam profissionais de saúde e hospitais e não temos sequer um ministro da Saúde, mas querem nos convencer de que é a hora de acabar com o isolamento, reabrir o comércio, tocar nossas vidas como antes, nos bombardendo com mensagens contraditórias até acabarmos aceitando como natural as dezenas, talvez centenas, de milhares de mortes que isso implicaria.

Não.

Passei hoje duas horas numa chamada com a minha família, ensinando-a a verificar se informações recebidas eram ou não confiáveis. Todos na minha família puderam estudar, todos fizeram ou estão fazendo faculdade, e mesmo assim caíram e replicaram bisonhamente fake news. Não tem a ver só com estudo, não quando são robôs impulsionando essas narrativas e sendo explicitamente usados para nos desorientar.

Não, nós não temos condições de fazer frente às fake news só com posts nas redes sociais. É muito necessário que nos mobilizemos para visibilizar ações que ajudem a trazer sustento e autonomia aos mais afetados pelo coronavírus e também que usemos as redes para questionar os absurdos do governo atual, mas não dá pra acreditar que a situação magicamente se resolverá à base de cliques e abaixo-assinados. Não há diálogo com robôs, não há forma de convencê-los a mudar de ideia: eles respondem à lógica do dinheiro, dinheiro sujo, e nós não vamos jogar o mesmo jogo de quem está por trás deles.

Sobra o que, então? Manifestações de rua. Todos os políticos que aí estão estão ainda assombrados pelas Jornadas de Junho de 2013, em especial agora que a população do mais rico país do mundo está fazendo o que faz. Essa é a hora de darmos uma resposta à altura. É um risco grande, mesmo tomando-se todas as medidas de segurança (máscara o tempo todo, álcool em gel sempre à mão, distância mínima, evitando contato físico e mexer no rosto), ainda mais por nem estarmos conseguindo conter a disseminação do vírus, mas é um risco que precisamos correr, sobretudo os que estiverem numa situação mais privilegiada nessa quarentena.

A pandemia se alastra pelas periferias do país e as pessoas mais afetadas são justamente as que menos têm condições de ocupar as ruas pela democracia e pelas vidas negras e pobres, suas vidas no mais das vezes. Não podemos ser cúmplices desse genocídio. Não é rolê, não é passeio, nem álibi para ignorar a quarentena dali em diante: é manifestação política, ocupação do espaço público para atacar o desdém dos governantes.

Você que já furou a quarentena por bobagem, ou que está muito confortável enfrentando o isolamento, se não é grupo de risco nem mora com grupo de risco é hora de começar a se mobilizar por algo maior do que você e seu bairro. Quem se surpreendeu com atos sendo puxados por torcidas organizadas precisa se lembrar que futebol é povo e nenhuma transformação se faz subestimando a força do povo, a sua inteligência. Já temos chamados de novos atos eclodindo por todo o Brasil.

Que junho de 2020 seja a retomada de 2013, axé!

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