Nos últimos dias, não sem razão, assistiu-se a uma enxurrada de editoriais da chamada grande mídia denunciando: ações autoritárias do governo Bolsonaro, ataques à liberdade de imprensa, críticas à gestão da pandemia provocada pelo covid-19 e mesmo sobre a forma como o presidente e o ministro Paulo Guedes conduzem a política econômica, em flagrante crise e estagnação. O Jornal “O Globo”, que já havia publicado o editorial: “Bolsonaro insiste na desobediência institucional”, no qual defende que o presidente parece decidido a se manter, de vez, testando os limites impostos ao Executivo pela Constituição, destaca como ainda mais grave que Bolsonaro, pelo cargo que ocupa: “tem pregado a sedição, com ameaças claras à ordem constituída”.

No caso do covid-19, “O Globo” usou inclusive, como estratégia de contra-ataque, o editorial da revista científica “The Lancet”, que estampou a manchete: “Bolsonaro precisa mudar drasticamente seu rumo ou terá de ser o próximo a sair”, em referência à demissão de dois ministros da Saúde do Governo em menos de um mês. Segundo o jornal, ao afirmar que não “vai admitir mais interferência”, Bolsonaro avisou que pretende manter todos os “poderes nas mãos do Executivo, com o Judiciário e o Legislativo no papel de figurantes”, o que seria inaceitável.

No editorial, “O Globo” refere-se à presença de Bolsonaro em manifestações antidemocráticas em Brasília, apontando como exemplo o ato às portas do Quartel-General do Exército, no qual ele afirmou em discurso: “não queremos negociar nada”, em meio às palavras de ordem de seus seguidores, a favor de um golpe militar e de um novo AI-5. O jornal relembra que a presença do Presidente em manifestação no Palácio do Planalto na semana seguinte, serviu para reforçar o caráter autoritário e ilegal do ato, e incentivou os bolsonaristas a atacar repórteres do jornal “O Estado de S.Paulo”, agredindo a própria liberdade de imprensa.

Ato após ato de cariz autoritário, ataques após ataques à mídia, seja do próprio presidente seja dos seus seguidores e a falta de segurança levaram “O Globo” e o jornal “Folha de S.Paulo” ao cancelamento da cobertura jornalística na residência oficial de Bolsonaro, em Brasília, a decisão imediatamente acompanhada por outros órgãos de comunicação, entre os quais os jornais o “Estado de São Paulo” e “Valor Econômico”, os portais “Metrópoles” e “UOL”, e o grupo “Bandeirantes” de rádio e TV.

Ainda que a grande mídia mantivesse algum distanciamento de Bolsonaro, nos seus primeiros meses de gestão, com um posicionamento crítico apenas protocolar e lateral, manteve apoio considerável à agenda econômica neoliberal e à política de desmonte do Estado e dos programas sociais operados pelo Governo. A imprensa apoiou todas as pautas “bomba”, encaminhadas ou defendidas por Bolsonaro no Congresso – contra os interesses da classe trabalhadora -, e referendou os projetos de lei de interesse do patronato, que derrubaram as garantias dos direitos trabalhistas e a reforma da previdência.

Todo e qualquer jornalista, por mais crítico que seja ao comportamento da grande mídia, rejeitará esse tipo de tentativa de cerceamento à liberdade de imprensa praticada pelo presidente, e se oporá ao uso da violência verbal ou física contra os profissionais de comunicação social. Trata-se de um precedente pernicioso ao exercício do poder, e de uma prática aviltante à democracia e ao estado de direito.

Todavia, é inegável, que a grande mídia brasileira teve um papel importante no avanço da agenda conservadora e na propagação do discurso de ódio contra os movimentos sociais, os movimentos de direitos humanos, e os partidos e governos de esquerda. Por exemplo: nenhum veículo da grande mídia escreveu um editorial repreendendo o então deputado Bolsonaro quando ele ameaçou a também deputada Maria do Rosário (PT), tendo depois afirmado em entrevista à imprensa e reforçado no plenário do Parlamento que a parlamentar “não merecia ser estuprada porque era muito feia”, acrescentando ainda que ela “não faz o seu tipo”.

Da mesma forma, não se viu nenhum editorial da grande mídia brasileira condenando o discurso do deputado Bolsonaro para justificar o seu voto a favor do impeachment da então presidente Dilma Rousseff, homenageando um reconhecido torturador do regime militar: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”, disse ele. O trecho final, aliás, virou mote de campanha e símbolo do seu governo. Ao que parece, encontra-se a grande mídia diante da criatura que ajudou a criar, ou do monstro.

O pesquisador que resolver estudar a sério apenas os editoriais de três ou quatro dos principais veículos tradicionais, de sete ou oito grupos hegemônicos de comunicação no Brasil, nos últimos 10 anos, encontrará dados factíveis para comprovar a participação da grande mídia na construção da narrativa de criminalização dos movimentos sociais, de desqualificação dos direitos humanos e, especialmente, de instrumentação do impeachment da ex-presidente. Alguém com alguma capacidade de memória episódica terá esquecido a substituição da programação de domingo, pela cobertura de manifestações contra o governo nas principais redes de televisão do Brasil, até que se consolidasse o impeachment?

A praga das fake news nas redes sociais resulta de práticas orientadas, dentro das redações, para conspurcar reputações de adversários e, ao mesmo tempo, catapultar grupos políticos para o poder, segundo os interesses dos empresários do setor. Negar a responsabilidade da comunicação social no desmonte do pacto social mantenedor da democracia no Brasil, a partir da Constituinte de 1988 é um erro histórico e os jornalistas têm obrigação de reparar esse erro. Os negacionistas em campanha contra o isolamento social, apoiadores de Bolsonaro, não seriam os seguidores do “pato” da FIESP, investidos de ufanismo verde amarelo para apear Dilma do poder?

O expediente das fake news chegou também às campanhas políticas, fenômeno que dominou a disputa eleitoral na eleição de 2018, na qual Bolsonaro foi eleito Presidente. Em 2019 a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito Mista (CPIM), composta por 15 senadores e 15 deputados, para investigar a criação de perfis falsos e ataques cibernéticos nas diversas redes sociais, com possível influência no processo eleitoral e debate público, que poderá inclusive resultar em processo de impeachment contra Bolsonaro. Existem suspeitas de que durante a sua campanha teriam sido disparadas mensagens em massa de WhatsApp, com desinformação e discursos de ódio, a partir do Brasil, mas utilizando chips de vários países.

Na quarta-feira, 27, o ministro Alexandre de Moraes determinou que a Polícia Federal executasse 29 mandados de busca e apreensão, no âmbito do inquérito das fake news, no Supremo Tribunal Federal (STF), que investiga a participação de políticos, empresários e youtubers (influenciadores digitais nas redes sociais) como produtores de informações falsas e de ameaças contra o Supremo. O Ministro justificou a medida afirmando a necessidade de coibir os discursos de ódio, a subversão da ordem vigente e a incitação à quebra da normalidade institucional e democrática. Horas depois da busca e apreensão na casa de uma das investigadas, Sara Winter, a ativista bolsonarista alinhada ao discurso do Presidente, ameaçou o Ministro nas redes sociais, afirmando que gostaria de “trocar soco” com o magistrado e que ele “Nunca mais vai ter paz na sua vida”.

Na semana anterior, o ministro Celso de Mello, decano do STF, liberou o vídeo de uma reunião realizada no Palácio do Planalto, entre o presidente e seus ministros, apontado pelo ex-ministro Sérgio Moro como prova da interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Depois de se demitir do Ministério da Justiça, Moro revelou que Bolsonaro teria exigido a troca do superintendente da Polícia Federal, de forma a evitar uma investigação contra os seus familiares e aliados. A fita acabou revelando também a fala do Ministro da Educação Abraham Weintraub, que afirmou: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”. A declaração foi considerada ofensiva por Celso de Mello, configurando possível crime de injúria.

“Com que grandeza teriam chegado às mais vis baixezas”, teria dito Millor Fernandes, sobre o conteúdo da tal fita da reunião do Presidente e seu elenco de Ministros, insultuosos, como certamente nunca se presenciou antes na história da República. A reunião faz lembrar uma festa por ocasião da prisão do ex-presidente Lula, realizada na calçada e nas dependências de um famoso bordel de luxo em São Paulo, que usou como motivo decorativo na fachada do prédio, painéis fotográficos com as imagens da ex-Presidente do STF, Cármen Lúcia e do então juiz Moro, heróis de ocasião. À época, a grande mídia deu destaque ao evento, sem a menor cerimônia e a maior desfaçatez.

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