As medidas de busca e apreensão adotadas no âmbito do conhecido “inquérito das fake news”, instaurado e em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF), levou a uma série de questionamentos jurídicos. Tal inquérito poderia ter sido aberto pelo próprio STF? A Corte teria essa prerrogativa? A seguir a literalidade do Código de Processo Penal (CPP), a resposta seria não. Mas, tal resposta não é tão simples e nem reside na mera análise literal das regras processuais gerais. Senão, vejamos:

A primeira questão é que, em princípio, juiz não pode investigar, apenas o MP (no caso do inquérito civil público ou procedimento preliminar de investigação) e as Polícias Judiciárias (no caso do inquérito policial). Sendo assim, diante de uma notícia-crime, a abertura de inquérito deve ser feita, de ofício, pela autoridade policial; por requisição do órgão ministerial ou da autoridade judiciária; ou, ainda, a requerimento do ofendido ou quem tiver poderes de lhe representar, donde se poderia concluir, de modo açodado, que o inquérito, em si, não poderia ter sido aberto de ofício pelo STF. A segunda questão é que, uma vez aberto, o seu relator deveria ter sido designado por sorteio e não por indicação do presidente da Corte. O terceiro e último ponto diz respeito à alegação de que não havia fatos objetivamente definidos, que pudessem constituir objeto da investigação. Pois bem. Analisemos cada aspecto jurídico, ponto-a-ponto:

No que diz respeito ao ponto (1), há uma exceção para a regra geral que veda a deflagração de investigação, de ofício, pelo próprio magistrado supremo. Trata-se do art. 43 do RISTF, que assim diz: “Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.”

Sendo assim, para que o próprio STF pudesse instaurar inquérito e conduzir investigações de supostos crimes, seria necessário que os fatos supostamente ilícitos tivessem sido praticados nas dependências físicas do próprio STF, em face de autoridades da Corte ou pessoa sujeita à sua jurisdição, como assinalou, em artigo publicado no ano de 2019, o eminente professor e advogado Carlos Bermudes, entendendo o mesmo que não é possível estender tal entendimento para além da literalidade da norma em comento.

Ouso discordar do famoso causídico. Realmente, os fatos sob investigação no inquérito em questão não ocorreram, fisicamente, nas dependências do STF mas, sim, em ambiente virtual, com ampla repercussão e alcance em todo o território nacional. Sendo assim, como adotar o critério de territorialidade/espacialidade para definir a aplicação do art. 43, do RISTF, para efeito de abertura do inquérito? Ao meu ver, em crimes praticados no meio virtual, a adoção da territorialidade, como critério de fixação da competência jurisdicional, já é tema bastante controverso. No processo penal, a regra geral de fixação da competência/jurisdição é o lugar da infração. O domicílio ou residência do réu é regra supletiva. A competência em razão da matéria é regra específica. A prerrogativa de foro também. Há ainda as regras de conexão e continência. E, por fim, as regras de prevenção, como critério residual.

Há ainda regras claras para aplicação da lei processual penal no espaço (território), em se tratando de crimes cometidos a bordo de embarcações ou aeronaves. Mas, não há regras tão claras para aplicação da lei processual penal, em se tratando de crimes cometidos em ambiente virtual. Aplicam-se as mesmas regras de espacialidade/territorialidade usadas para o mundo real, mas, seriam elas as mais corretas?

Em caso de crimes virtuais, ao invés do local da infração, não seria mais justo, como tem sido feito na jurisdição civil, a partir do novo CPC que, em seu art. 46, estabelece que nas ações fundadas em direito pessoal ou em direito real de bens móveis, quando for incerto ou desconhecido o domicílio do réu, o foro é no domicílio do autor? Em crimes virtuais, onde também há incerteza ou mesmo irrelevância quanto ao local da infração (já que os seus efeitos são propagados pela web) não seria o caso de, ao invés do local da infração, definir o domicílio da vítima como primeiro critério de fixação da competência territorial, até em homenagem ao princípio da inafastabilidade da jurisdição? Ou o local de maior alcance/repercussão das postagens?

Faço tais observações, a título de reflexão. Porque aqui não se trata de hipótese de fixação de competência para julgar, mas sim, para deflagrar investigação. Pois bem. Se o STF é o conjunto de seus ministros, estejam onde estes estiverem, física ou virtualmente; e se estes sofreram ameaças – ainda que por meio digital – estes seriam competentes não só para julgar, mas também para instaurar, instruir e processar a investigação dos supostos delitos contra eles praticados em dependências não físicas da Corte. Isso porque, da mesma forma em que não há regras claras que definam os critérios para fixação de competência/jurisdição territorial em caso de crimes virtuais, a aplicação do art. 43, redigido em época onde não havia a tecnologia e os “ambientes virtuais” de que hoje dispomos – e onde convivemos -, deve ser estendida para alcançar a compreensão de que “dependências” não são apenas as “dependências físicas”, mas, sim, qualquer espécie de dependência, seja ela digital ou virtual, relacionada à Corte ou à atuação de seus ministros.

No que pertine ao ponto (2), esse é um aspecto falho, porém sanável. Diz-se que a nulidade é absoluta quando há violação de norma instituída para resguardar, predominantemente, o interesse público (o dano é presumido). Já a nulidade é relativa se a regra violada servir para proteger, predominantemente, o interesse das partes (o dano deve ser provado por quem o alega). No caso da designação de relator por indicação e não por sorteio, tem-se que não há violação ao princípio do Juiz Natural (norma de proteção de interesse público), posto que tal princípio só seria violado, no presente caso, se fossem transgredidas regras de definição da fixação de competência/jurisdição que, no caso, recaem sobre o próprio STF, o que está mantido. Um provável motivo para nulidade relativa, em se tratando da designação de relator, é se houvesse violação às regras de suspeição ou impedimento. Nesse caso, este ou aquele relator não interfere no desenrolar da lide, a não ser na mera simpatia ou preferência da parte ré/indiciada/investigada, tratando-se, pois, se houver, de nulidade relativa, cujo dano deve ser objetivamente provado por quem o alegar. A forma de se proceder com o saneamento de tal nulidade relativa, caso seja alegada, é proceder com a redistribuição do feito, quando o novel relator poderá convalidar os atos praticados pelo atual relator sem que estes tenham de ser invalidados; ou repeti-los, no caso de invalidá-los.

No que tange ao ponto (3) havia – e ainda há – fato definido e pré-determinado a constituir o objeto das investigações. As ofensas e ameaças concretas, constantes em postagens de redes sociais, advindos de perfis específicos e disseminadas em massa, por intermédio de programação digital e uso de robôs. Mais líquido e certo do que isso, impossível. Sendo assim, havia e há materialidade comprovada e fartos indícios de autoria. Se for identificado risco de obstrução quanto à produção de provas, de fuga ou de que os crimes continuem sendo praticados é possível até mesmo decretar prisão preventiva daqueles contra quem se determinou buscas e apreensões.

Analisados e refutados os três aspectos suscitados para sustentar a alegação de ilegalidade quanto à abertura de inquérito criminal pelo próprio STF, entendemos pela constitucionalidade da medida adotada, assim como das diligências que dela se desdobraram, não havendo vício ou mácula de natureza constitucional e jurídica a impedir o seu prosseguimento.

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