Na bizarra reunião de ministros que provocou um choque, algumas questões que envolvem diretamente conflitos ecológicos me chamaram especialmente a atenção: falas racistas, valores de missões evangélicas, interesses internacionais e desregulamentação ambiental. Aparentemente desconexas, elas se encaixam dentro de uma lógica do genocídio que está em curso no Brasil hoje, sobretudo contra povos indígenas e quilombolas na Amazônia. Foram mais expostos nos comentários de Abraham Weintraub, Ricardo Salles e Damares Alves. Não são falas desconexas. Elas revelam uma lógica que está conduzindo ações e direcionando alguns grupos específicos para a morte — e pretendem se aproveitar essas mortes para conquistar recursos naturais e territórios. Literalmente.

Weintraub, que responde a processo por racismo, disse que odeia a expressão “povos indígenas”. E foi elogiado pelo presidente. Não existe, para ele, nenhum outro povo a não ser “povo brasileiro”. Quem pensar diferente, “sai de ré” — para a morte?

“odeio o termo “povos indígenas”, odeio esse termo. Odeio. O “povo cigano”. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré.”

Ódio aos indígenas foi nominalmente citado, mas é ódio a toda diferença. “Ciganos” como ele cita também, e todos que se reconhecem de forma diferente da hegemonia branca colonial: trata-se de um pressuposto racial para a eliminação. O Outro, “sai de ré” — e ele aponta alguma direção com o braço, em gesto ameaçador.

Este ódio expressado por Weintraub se relaciona com a intervenção anterior de Ricardo Salles. Para vender o país aos interesses do capital internacional e da elite econômica brasileira, “que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx certamente cobrou dele, cobrou do Paulo… cobrou da Teresa, cobrou do Tarcísio”, há uma oportunidade dada pela imprensa no momento: a atenção da imprensa (isto é, opinião pública), na pandemia. Para o capital financeiro (Guedes), mineração (Onyx e Tarcísio) e o agronegócio (Teresa), só falta agora “é de regulatório”.

Não se trata apenas da Amazônia, mas também citada nominalmente a Mata Atlântica e todas as áreas de expansão da fronteira agrícola, que inclui o Cerrado e a Caatinga.

É hora de passar a “boiada”. A “oportunidade” que o “alívio do momento” traz. Nada como uma tragédia ou um genocídio para a política do choque favorecer a expansão do capital.

Esta grande “janela de oportunidade” atingiu até o momento 61 povos indígenas, de acordo com os dados do último boletim do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, organização liderada pela Articulação dos Povos indígenas do Brasil (APIB), no dia 23 de maio. Já são mais de mil indivíduos indígenas infectados, e 125 mortes. Estes dados são mais próximo da realidade do que os do Ministério da Saúde do Governo Federal, que contabiliza por enquanto 34 óbitos e 700 casos. Para o Capital, vale mais a pena investir olhando os dados do movimento indígena.

Vendo pela lente do ministro Salles, trata-se de uma oportunidade tremenda que o Sars-CoV-2 esta oferecendo para aqueles que querem expandir fazendas e mineração para novas áreas, novos territórios. Espaços de floresta que estão ficando vazios de gente. Uma “oportunidade” para se “aproveitar”. Esta gente que deveria “sair de ré” — gente que Weintraub, com o acordo com presidente, odeia, e logo, todos ali, nas suas práticas políticas, se não pessoalmente, também odeiam.

Já ha casos entre os Kayapó, no Pará, onde o governo incentiva o garimpo ilegal — Salles abertamente se posicionando contra as operações do Ibama e reprimindo aqueles fiscais que tiraram as máquinas de garimpo justamente numa das aldeias atingidas. Já há casos entre os Kaiowá e Guarani, no Mato Grosso do Sul, onde o agronegócio tenta “aproveitar” também uma portaria da AGU que impede a demarcação das terras indígenas por um argumento do “marco temporal” que está sendo julgado, nesse momento, no STF (uma tese que afirma que os fazendeiros chegaram antes dos povos indígenas nas terras requeridas pelos indígenas, o que faz tanto sentido quanto a teoria da terra plana).

Esse ódio aos “povos indígenas” que abre uma janela de oportunidade para a venda de recursos naturais e terras para companhias internacionais, capital financeiro e ruralistas, como desenhou Salles, é simples de ser regulamentada, “coisa que é só, parecer, caneta, parecer, caneta”. E ela se apoia, também, na fala de Damares Alves — a ministra que deveria defender os direitos humanos e dos povos indígenas e tradicionais.

Diante desse quadro, Damares Alves diz que a política indigenista que estão construindo está “dando certo”. Ela descobriu que existem mais seringueiros do que imaginava, e acredita que ucranianos sejam um povo tradicional — uma confusão que não é por acaso, pois visa enfraquecer o direito do reconhecimento das terras das populações que ocupam territórios tradicionalmente.

Ela contou uma história de que foi a Roraima para investigar o primeiro óbito que diz ser 12 de abril — mas na verdade foi no dia 9. Ela se referia ao caso do jovem Yanomami, de 15 anos, que faleceu por covid-19. A suspeita levantada pela Hutukara Associação Yanomami é que ele tenha sido infectado em razão da invasão de garimpeiro na terra indígena Yanomami — mesmos garimpeiros, como citado acima, apoiado por Salles e Bolsonaro. Todo o caso foi marcado pelo racismo nas ações da Secretaria especial de Saúde indígena, até o seu sepultamento. Sem nenhuma comunicação sequer à sua própria família, um ato “inumano e infame”, descreveu o antropólogo Bruce Albert, amigo de décadas dos Yanomami.

Daí vem a história mais bizarra de Damares: nós recebemos a notícia que haveria contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiro pra colocar nas costas do presidente Bolsonaro.

Novamente, o ataque que ela faz tem tiro certeiro. Trata-se de criar a teoria da conspiração de que ONGs e interesses estrangeiros — não aqueles representados por Guedes, Onyx, Teresa, Tarcísio… — estariam por trás da tragédia em curso (como aquela de que haviam colocado fogo na Amazônia). É produzir o genocídio, e negar o genocídio. Mas essa bala atirada por Damares também tem, além dos alvos, os aliados não citados: agências missionárias evangélicas fundamentalistas, de origem norte-americana, que a apoiam

Damares, “terrivelmente cristã”, é uma das fundadoras da Atini, missão que surgiu da Jocum (Jovens com Uma Missão), que se associa com uma rede de missões como a Missão Novas Tribos do Brasil e Asas do Socorro, todas estas com suas sedes na Florida, e filiadas, com outras 40 missões, na Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB).

Estas missões estão também no centro de um debate atual e diretamente relacionado com as ações genocidas descritas acima. Na quinta-feira última, o desembargador Souza Prudente, do TRF 1, suspendeu a nomeação do pastor Ricardo Lopes Dias da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recente Contato da Funai (CGIIRC). Dias atuou por mais de dez anos evangelizando indígenas pela Missão Novas Tribos, e depois, como revelou uma reportagem do jornal O Globo, seguiu o trabalho de evangelização missionária (o que ele omitia).

A ação contra a atuação evangélica na Funai de Damares foi movida pelo Ministério Público Federal e pela UNIVAJA (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) nela, os indígenas que já haviam conseguido uma liminar da justiça federal para impedir a entrada de missionários nas aldeias durante o covid-19, denunciaram o etnocídio que havia sido praticado pela missão a qual Dias integrava, e Damares apoia.

Nessa mesma quinta-feira, o lobby dessas missões evangélicas no congresso conseguiu manobrar e inserir um parágrafo no PL 1142, que previa medidas de amparo aos povos indígenas, para garantir a permanência de missionários nas áreas indígenas, especialmente onde vivem povos isolados. O movimento indígena rapidamente denunciou nas mídias sociais o risco que a manobra traz: além do etnocídio em tempos normais, também o risco de genocídio.

Por que a defesa das missões evangélicas fundamentalistas no meio de uma pandemia e em um debate sobre a expansão de interesses econômicos diante das mortes de indígenas? Há muitas hipóteses que revelam que não são acasos soltos. O mais urgente é que se o PL 1142 for aprovado no Senado com esse artigo que garante a permanência de missionários religiosos nas áreas, o sucesso da política indigenista de Damares e Bolsonaro pode ser devastador para sempre, sem retorno.

Por um lado, transparece a “questão de valores” que Damares cita na sua fala: através do etnocídio, levar os valores cristãos e do espírito do capitalismo para as aldeias. Contribuir para expansão do agronegócio e da mineração, em uma relação sombria e pouco falada das associações em curso dentro da Funai hoje e que não estão na bíblia, mas no mundo real. Uma ponte que também foi exposta nesse ano, com a nomeação de Dias na Funai e a atuação de lobby do filho do presidente da Novas Tribos em favor de invasores de terras indígenas.

Por outro, a própria necropolítica: em caso de levarem a epidemia, abre-se novas áreas para o capital, enquanto acumula-se almas selvagens no mercado espiritual.

Em Tabatinga, o MPF está investigando a relação entre cultos evangélicos em uma aldeia indígena e a disseminação do coronavírus no alto Solimões. Na ação movida pela UNIJAVA contra a Novas Tribos e outros missionárias, os indígenas escrevem: “E as populações indígenas não podem ficar à mercê de contrair a mortal contaminação em razão da loucura de quem acredita ter contato direto com o Criador!”

Se os garimpeiros levaram o coronavírus aos Yanomami hoje, a epidemia mais devastadora que tiveram foi de sarampo. E ela chegou justamente por missionários da Novas Tribos, segundo testemunhou o líder indígena Davi Kopenawa no livro A Queda do Céu (Cia das Letras, 2015): “A epidemia de sarampo nos atingiu na missão” (p. 264), trazida no avião da missão, pela filha de dois anos de um missionário norte-americano que se infectou em Manaus. Essa epidemia se propagou para diversas aldeias, até na Venezuela. Foi em 1967, na ditadura civil-militar que foi elogiada por Bolsonaro repetidamente nessa fatídica reunião.

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