Pandemia.

Algo que só víamos em filmes de ficção científica e ouvíamos falar em podcasts para nerds, de repente, muito de repente, entrou em nossas vidas.

Enquanto escrevo, o Brasil tem 168.331 casos confirmados de coronavírus e 11.519 mortes por Covid-19, mortes que se deram num período inferior a dois meses e que sabemos ser muito inferiores ao número real, devido à alarmante subnotificação da doença em nosso país.

Medidas de isolamento social incidiram diretamente sobre a educação, impedindo a continuidade das atividades escolares presenciais.

De uma hora para outra, crianças e adolescentes mudaram radicalmente suas rotinas, vendo-se privados do convívio social, da possibilidade de movimentação física e de agitação inerentes à rotina do colégio, do recreio, da troca de professores, dos jogos de quadra, do lanche em espaço coletivo, das atividades em grupo.

Alguns para ficarem trancafiados em seus apartamentos apertados, outros para estarem mais confortáveis em casas com seu próprio quarto individual, equipado com computador e livros, como aquele idealizado na propaganda do Enem, outros para dividirem habitações multifamiliares de um único cômodo, em favelas, destituídas de serviços mais elementares à saúde, como saneamento básico e água corrente.

E aos colégios, em especial, particulares, o desafio de buscar manter a ordem e a normalidade, de atender às exigências de mães e pais, de não perder o ano letivo, de não emendar dois anos letivos um no outro, de garantir que os conteúdos sejam ministrados.

Dos professores, exige-se o impensável: que se tornem youtubers, que adaptem sua metodologia para as plataformas virtuais, que consigam atender às novas e enormes demandas dos alunos a quem sequer conseguem enxergar na tela do computador.

E dos alunos? Que se adaptem à mudança.

Assim, num piscar de olhos, num estalar de dedos.

Não tenho dúvidas de que os colégios, preocupados que estão com suas metas de conteúdo, têm a melhor das intenções e querem colaborar com a restauração de uma rotina favorável aos alunos.

Mas, como mãe, peço: parem um pouco.

Respirem, deixem nossos filhos respirar, deixem os professores respirar e nos deixem respirar.

Afinal, mães e pais também sofrem diretamente o impacto dessa mudança, provando que a discussão acerca da educação à distância é muito mais complexa do que se imaginava.

Não dá pra fingir que estamos na mesma realidade anterior ou que é possível manter a normalidade no meio de uma pandemia. 

Manter o horário das aulas, tarefas e atividades como se estivéssemos na mesma dinâmica presencial é um equívoco.

Como deixar crianças, adolescentes e jovens horas seguidas em frente a um computador ou celular? Como esperar que esse aprendizado possa ocorrer da mesma forma como o era em época de normalidade?

Esperamos demais desses alunos, cobramos demais, fantasiamos muito. Imaginamos que por terem nascido com um celular na mão, eles saberão fazer uso dessa tecnologia, como se isso não fosse também algo a ser ensinado.

Sequer podemos garantir o sigilo de dados usados largamente na plataforma do Google educação. Como podemos fantasiar que esses alunos sabem lidar com a tecnologia, apenas porque têm familiaridade com o youtube e com games?

Fantasiamos também as condições ideais para cada aluno estudar em sua casa, ao arrepio das condições fáticas de cada um: esse aluno tem computador, tem irmãos dividindo a mesma tecnologia, tem internet? Tem ambiente adequado aos estudos?

Sobretudo, há condições emocionais para tantas exigências escolares?

Não é fácil para adolescentes perder a liberdade. E isso é o que o isolamento faz: restringir fortemente a liberdade, em nome de uma necessidade coletiva superior à individual. O ambiente de confinamento e a ruptura radical com as condições que asseguravam a rotina anterior impõem desafios para os quais ninguém estava preparado. Nem adultos, nem muito menos crianças e adolescentes.

Pesquisa do instituto YoungMinds, organização não-governamental pela saúde mental dos jovens, mostrou que a pandemia está impactando fortemente a saúde mental de jovens, mesmo quando esses compreendem e concordam com as medidas de isolamento. Muitos jovens que participaram da pesquisa relataram aumento da ansiedade, problemas para dormir, ataques de pânico ou maior desejo de se automutilar.

É nesse sentido que a preocupação dos colégios em retomar a rotina tem que ser repensada e redimensionada.

Sem dúvida, ter uma rotina é importante para a saúde mental dos alunos. Mas querer retomar a rotina anterior é irreal e pode acabar se constituindo em fator de adoecimento e como mais um agravante para a crise que estamos vivendo.

É necessário reinventar a rotina a partir dessa nova realidade, e não contra ela.

É preciso levar em consideração que o rendimento dos alunos não será o mesmo que antes, quando as aulas eram presenciais, quando o professor estava em sala de aula acompanhando os alunos, interpretando humores da turma, percebendo dificuldades, interesse ou desinteresse na matéria.

É preciso levar em consideração que o tempo em frente ao computador ou celular, dedicado às vídeo-aulas ou aulas online, é um tempo completamente distinto do tempo de aula presencial e a dificuldade de concentração é um dado a ser considerado para um número significativo de estudantes.

É preciso levar em consideração que, em muitos casos, o tempo dedicado ao trabalho doméstico realizado por essas crianças e adolescentes, diante da licença dada à empregada doméstica, aumentou (ou deveria ter aumentado).

É preciso levar em consideração que tarefas excessivas tornam-se sobremodo entediantes nesse novo contexto e é necessário que haja tempo livre para ler, para realizar atividades intrafamiliares capazes de promover um tempo familiar de qualidade, como jogar, assistir filmes e séries e mesmo não fazer nada, juntos.

Sobrecarregar crianças e adolescentes com aulas e tarefas é um equívoco. Diante do risco de adoecimento mental, o conteúdo é o menos importante. 

Claro que a insegurança quanto às resoluções do Ministério da Educação sobre cômputo de dias letivos e carga horária, estando o MEC chefiado por um ser despreparado e irresponsável, mais infantil até do que nossas crianças e adolescentes, não deixa nenhum administrador escolar em posição confortável.

Entretanto, diante da urgência imposta pelo coronavírus, o STF flexibilizou regras orçamentárias, suspendendo trechos da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias. É possível antever a possibilidade do judiciário reconhecer a mesma urgência para suspender exigências relativas ao ano letivo, diante do que chamamos de devido processo legal substantivo, que impõe a razoabilidade como critério de interpretação das normas jurídicas, tema merecedor de análise que foge ao âmbito desta carta.

De qualquer modo, colégios estão tomando decisões rápidas e certamente bem intencionadas para uma situação para a qual ninguém estava preparado.

Entretanto, a ânsia por acertar pode estar levando ao erro. Reconhecer que não temos respostas para tudo, recuar, admitir nossas limitações, talvez seja a melhor e mais prudente atitude nesse momento.

 

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