Arte: Cris Vector / Design Ativista

Desde a chegada ao país, São Paulo tornou-se o epicentro da pandemia por coronavírus no Brasil. E assim como aconteceu e ainda acontece na cidade de Nova York, são os setores populares quem mais se expõem ao contágio e os que mais têm dificuldades para obter um atendimento rápido e eficiente em qualquer unidade de saúde. A falta de iniciativas para investir na área, afirmada no discurso neoliberal de menosprezo pelas políticas públicas e sociais, repercute hoje como uma alarmante falta de infraestrutura para conter as consequências da Covid-19 numa sociedade com tão alta densidade populacional.

Particularmente na metrópole, a última região a registrar caso confirmado de coronavírus foi a zona leste. Hoje, é a região com mais número de mortes da cidade. Juliana Cardoso, que está no seu terceiro mandato e é a única mulher da bancada do PT na Câmara Municipal de São Paulo, de origem indígena e criada na periferia, responde a vários questionamentos sobre a situação da pandemia na cidade e no estado.

Quais medidas poderiam ser implementadas para fazer frente ao aumento no número de casos de violência doméstica? E com quais recursos?

Primeiro, é preciso dizer que a questão do aumento da violência doméstica não deveria ser uma surpresa para qualquer governo, uma vez que foi amplamente noticiado o aumento da violência doméstica nos países que entraram em quarentena antes de nós. Foi assim na Itália, foi assim na China, na França, Espanha etc

A problemática da violência também foi abordada num documento da ONU Mulheres que teve ampla repercussão no Brasil. Nesse documento, já se sinalizava para o fato de que a violência doméstica aumentaria, mas que as mulheres, em razão do isolamento, teriam dificuldade de acessar os serviços. E que os governos deveriam se preparar para isso, investindo fortemente em campanhas, mantendo os serviços funcionando e fortalecendo os grupos de mulheres que trabalham com as mulheres, aumentando número de vagas de abrigamento, dentre outras recomendações.

Nada disso foi feito, exceto pela manutenção da continuidade da prestação dos serviços que atendem as mulheres e muito mais baseado no compromisso das trabalhadoras desses serviços, do que pelo apoio das secretarias. Há duas semanas, as trabalhadoras dos CDCMS (Centros de Defesa e Convivências das Mulheres ligados a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social), divulgaram uma nota em que denunciavam ameaças de corte nos salários e férias em razão do teletrabalho ou regime de rodízio adotados pelos serviços. Isso é sério! As técnicas estão bancando seus EPIs e sendo pressionadas a produzirem relatórios diários ao invés de poderem se concentrar na proposição de soluções para a questão do acesso das mulheres ao serviço.

E isso não sou eu quem está falando. O Ministério Público alertou a Prefeitura com uma série de recomendações administrativas, partindo do fato de que até o presente momento, não há diretrizes técnicas e outras normatizações específicas ao atendimento a ser prestado às mulheres em situação de violência, informações sobre os serviços são de difíceis localização no site da prefeitura, não existem campanhas de sensibilização sobre a temática para a sociedade, informando sobre os serviços, por exemplo.

E isso é algo que pautamos desde há pelo menos 40 dias, desde o início da pandemia, e só agora (dia 29 de abril) é que a CMSP aprovou uma série de iniciativas, dentre elas a questão da campanha e da ampliação das vagas em abrigos, por meio da contratação de vagas em hotéis.

Na minha visão, isso mostra que o tema da violência das mulheres não têm recebido a atenção que merece. Por isso, nosso mandato atuou muito para que a CPI da violência contra as mulheres, instaurada pouco antes de entrarmos em quarentena, fosse retomada para que pudesse ser um espaço para avaliação das ações, articulação de ações, enfim, melhoria dos serviços prestados. Isso porque a violência contra as mulheres não têm recebido a atenção que ela merece.

Por fim, ouvir e fortalecer as redes de enfrentamento à violência contra as mulheres na cidade, desburocratizar os fluxos de abrigamento, criando uma central única de vagas, garantindo a transparência e o encaminhamento imediato das mulheres em risco de morte, e dar condições de trabalho às trabalhadoras não tem grandes custos e são demandas históricas que o movimento de mulheres e especialistas têm apresentado ao poder público. 

A que poderíamos atribuir o fato da Covid-19 ter tido uma incidência tão grande no estado e na cidade de SP?

A cidade de São Paulo é o centro nervoso e financeiro do Brasil. Além de ser a cidade mais globalizada se constitui em pólo econômico. Aqui foi registrado o primeiro caso de contaminação, importado da Itália em 25 de fevereiro. Quer dizer, inicialmente o Covid 19 afetou a elite que viaja ao exterior. Esse paciente foi tratado num hospital de elite que é o Albert Einstein. Mas rapidamente, sobretudo desde abril, a doença se alastrou. Hoje as contaminações são as comunitárias e estão chegando com intensidade aos bairros de periferia. Em termos absolutos a cidade, pela sua densidade populacional, é a mais afetada. A região metropolitana de São Paulo já teve metade dos casos do Brasil e agora registra um terço. Essa é uma tendência, um retrato muito instantâneo dos efeitos na região, mas o fluxo está se espalhando pelas cidades do país.

Temos registros para avaliar a incidência da doença segundo a classe social da pessoa infectada? Poderíamos dizer que a pandemia repercute mais em setores sociais marginalizados? 

Com sua grandiosidade a cidade de São Paulo também é a que tem os maiores contrastes sociais. Apesar de atingir a todos, a doença tem efeitos diferentes nas classes sociais. Nem todos são iguais perante o coronavírus. A maioria de pessoas infectadas se concentra na zona oeste da cidade, mas os óbitos estão nas periferias. Das mortes registradas até 27 de abril nos 96 distritos da cidade, os 10 primeiros são de bairros da periferia. Se por um lado o Morumbi tem mais casos de pessoas infectadas, ele tem menos óbitos em comparação a Brasilândia com menos pessoas infectadas e que registra mais mortes. A pandemia tem repercussões diferentes. Nos bairros mais ricos as pessoas têm acesso rápido a hospitais, já os moradores da periferia enfrentam enormes problemas para receber atendimento. Está evidente que tem maior impacto na população mais empobrecida. Além das dificuldades até físicas para cumprir a quarentena nas favelas, o fator de contaminação é maior nessas comunidades com imóveis adensados e cômodos apertados.  E não há do governo do Estado e da prefeitura um plano de contingência para atender essas comunidades. E também porque são pessoas fragilizadas pelas suas condições socioeconômicas, pelas moradias precárias e por isso mais suscetíveis a contrair o coronavírus.

Em que condições de segurança estão trabalhando os agentes do estado e do município, tantos nas áreas da saúde, segurança, assistência social, etc?

Desde o começo da pandemia o mandato tem recebido constantes denúncias de falta de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) e até de materiais inadequados para o trabalho para oferecer segurança aos profissionais de saúde e de outros serviços essenciais. As queixas são de falta de máscaras, aventais, toucas, etc. Até 27 de abril havia 713 agentes de saúde com Covid-19. E 18 profissionais da rede municipal de saúde foram a óbito, além de outros dois casos suspeitos na Assistência Social. No Hospital Tide Setúbal, em São Miguel Paulista, zona leste, o Sindsep (Sindicato dos Servidores) junto com os funcionários já realizaram atos de protesto por falta de equipamentos. Em outros hospitais municipais também houve protestos como no Hospital do Campo Limpo e de Pirituba. Essa é uma dura realidade que temos denunciado, inclusive de sepultadores que, no início, trabalhavam sem proteção com enterros de pessoas sem causa de morte conhecida ora por falta de testes ora por exames à espera de resultados.  E as respostas protocolares da prefeitura são de que não há falta de EPIs. 

Você apresentou vários projetos de lei com medidas a serem tomadas durante a pandemia. Quais políticas públicas poderiam e deveriam ser implementadas com urgência?

São nos momentos de crise que os segmentos mais vulneráveis da sociedade precisam de proteção. Por isso apresentamos em março projeto de lei que autoriza a prefeitura a estabelecer ações práticas para minimizar os efeitos dessa pandemia. Para além das medidas administrativas e clínicas é necessário também ações efetivas do poder executivo. Uma delas isenta durante a quarentena mutuários dos programas habitacionais de baixa renda do Programa Minha Casa Minha Vida e programas da COHAB. O projeto também autoriza a Prefeitura a comprar e distribuir álcool em gel para a população de baixa renda e com alto índice de vulnerabilidade como os moradores em situação de rua. E estende para receberem a todos funcionários públicos.

Além dessas ações concretas, que não forma acolhidas, estamos dialogando na Câmara para apresentar moção ao Congresso Nacional para revogar a EC 95 que limita os investimentos na saúde até 2036 e já tirou R$ 22 bilhões da saúde pública. Também estamos dialogando para ampliar os leitos para atendimento dos pacientes, adaptando espaços municipais e cobrando a reabertura do Hospital Sorocabana, na Lapa. Não são apenas gestos de solidariedade, mas ações efetivas para superarmos esse difícil cenário.

Além disso, hoje estamos propondo a criação de centros de isolamento voluntários, principalmente próximos das comunidades, para receberem pessoas com Covid-19 para cumprir o ciclo de 14 dias, que não apresentam sintomas, mas que são transmissoras da doença. Essas pessoas, por causa das precárias condições de moradias, não têm como se manterem isoladas de seus familiares. É claro que isso deve ser precedido de testes em massa.

Também temos outro problema grave. Na cidade temos hoje (28 de abril) 340 pessoas em leitos de UTI, ocupando 72% deles. Logo, em 10 dias, vão faltar leitos. Por isso, é necessário que se adote fila única requisitando leitos de UTI de hospitais privados.

Que iniciativas o governo municipal está implementando para proteger os trabalhadores da cultura?

Com a interrupção de todas as atividades culturais (fechamento de salas de cinema, suspensão de shows e peças, fechamento de museus etc.) o setor necessita de medidas concretas para sobreviver ao período da pandemia. A área já se encontrava num cenário comprometida desde a posse do governo federal em 2019. No mundo inteiro a cultura é responsável por 30 milhões de empregos. E o impacto com a pandemia é o aumento do desemprego. O setor precisa de linhas de crédito e incentivos fiscais para empresas e produtores culturais.  Por essas razões nosso mandato apresentou projeto de lei autorizando a Secretaria Municipal de Cultura a implementar e divulgar apresentações artísticas com transmissões em vídeos com artes cênicas (circo, teatro, dança e ópera) e músicas de vários gêneros e estilos. Podem ser produções próprias ou com participação da secretaria. As gravações em vídeo serão selecionadas pela Secretaria para postagem na plataforma Youtube. As produções não podem ter cunho racista, xenófobo, sexista ou qualquer outra forma de preconceito ou estímulo à violência. Estamos atravessando um momento muito delicado. Estamos em isolamento social e isso significa que a vida das pessoas é prioridade. E a arte e a cultura podem e muito auxiliar para atravessarmos essa crise.

Enquanto atrapalha na crise o governo federal e as atitudes do presidente Jair Bolsonaro?

São flagrantes e beiram à insanidade as atitudes de desmobilização contra o isolamento social do presidente. Aproveito para fazer algumas ressalvas. Até 28 de abril o Brasil tinha 71.886 casos confirmados de Covid-19, mas esse número está subestimado, pois há subnotificação. E registrava 5.017 mortes confirmadas em todo território nacional. E fontes confiáveis projetam esse número cinco vezes maior. Nesse período o Brasil também registrou, por exemplo, aumento de 2.500% de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave. No Brasil o número de casos está dobrando a cada cinco dias, quando nos EUA leva seis dias e na Itália e Espanha são oito. E o que vemos. Não há uma estratégia do governo federal para o combate à pandemia. Antes com o ministro Mandetta o apelo contínuo era pelo isolamento social, necessário por sinal, mas com o presidente Bolsonaro indo na contramão da quarentena, politizando a questão e se blindando e se eximindo do seu fracasso econômico que vem antes da pandemia com altas taxas de desemprego e índices irrisórios de crescimento.

Agora, com o novo ministro Teich, o papel do governo federal é de mero repassador de equipamentos e de insumos com promessas não factíveis. Ele prometeu 46 milhões de testes rápidos. Mas, só entregou até o momento 2,3 milhões. Ele prometeu 13.660 respiradores hospitalares, mas só repassou apenas 272, ou seja só 2%. E por aí vai. Na realidade, esse ministro que repete a todo momento que a “curva brasileira está perfomada” está mais preocupado em descobrir uma fórmula matemática nas estatísticas da pandemia para justificar sair da quarentena. Olhe com tristeza o que ocorre em Manaus ou na cidade de Duque de Caxias com o colapso do sistema de saúde e funerário. E onde está o socorro do governo federal? O vice Mourão teve que ir lá em Manaus, mas e a ajuda federal? E o Bolsonaro, calcado em estudos científicos de quem acredita na Terra Plana, toma atitudes contrárias ao distanciamento social. E agora está preocupado com a fome e o desemprego. É muita desfaçatez de um governo que propôs somente 200 reais de auxílio emergencial e com os 600 reais aprovados pelo Congresso agora se apodera dessa medida como se fosse sua. Um governo que autorizou os cortes de salários e que primeiro foi socorrer o sistema financeiro.

Qual é a possibilidade real de um impeachment do presidente Jair Bolsonaro?

Apesar dele ter a Rede Globo como oposição e ainda reforçada pela saída do ministro Moro do governo, apesar de ter cometido inúmeros crimes de responsabilidade, apesar da Câmara Federal ter recebido 29 pedidos de impeachmeant, apesar das investidas a favor da ditadura e ilegais nas mídias sociais contra o Congresso e o STF, o impedimento de Bolsonaro requer outras condições para se tornar realidade. É necessária uma construção política ampla para isso e é preciso superar certos obstáculos.

Bolsonaro está mostrando que além da sua caneta o cofre funciona no acordo com o chamado Centrão. Ele conta com grande respaldo dos militares que ocupam áreas estratégicas do seu governo. Tem apoio das Redes Record, SBT e Bandeirantes. E além da extrema direita raivosa que vai às ruas tem fiéis seguidores, sobretudo entre os evangélicos, nas mídias sociais e que lhe conferem 33% de aprovação segundo o Data Folha, apesar de todas as suas maldades. Mas esse cenário pode mudar sim. Uma deposição depende da capacidade das esquerdas e da direita democrática de sensibilizar essa parte da população que lhe apoia. Diante desse quadro, com o afastamento via Congresso hoje difícil, a saída é pelas ruas, pelas mobilizações populares. Apesar da luta popular nas ruas estar inviabilizada pela pandemia, por motivos óbvios, o estopim está no ar. As panelas estão repicando a insatisfação, principalmente da classe média. Se Bolsonaro tem na Covid 19 aliada momentânea que impede manifestações, essa também pode se voltar contra ele, caso a catástrofe seja enorme.

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