Escrevo este artigo para falar do invisível. Um vírus microscópico, invisível a olho nu, já matou mais de 100 mil pessoas ao redor do mundo, deixou tantas outras milhares, milhões, confinadas ou à espera de um lugar para se isolar do contato social, estampa agora capas de jornais, revistas, placas, posts em redes sociais e ocupa nosso imaginário diariamente desde o início do ano. A máquina capitalista e estatal empenha todos os seus esforços em tornar visíveis os problemas e sua batalha contra esse inimigo que ninguém vê, enquanto invisibiliza e inviabiliza, mais uma vez, a vida daqueles e daquelas que estão sempre nas margens, nas periferias, fora dos cadastros, fora do sistema online de matrícula, fora do seu banco de e-mails, fora da plataforma de EAD personalizada. É para esses que volto meu olhar hoje.

Na semana passada, abri o jornal e me deparei com uma notícia que funcionários da Receita Federal foram mobilizados às centenas para responder 36 mil mensagens enviadas por contribuintes para uma caixa postal eletrônica criada exclusivamente para atender a demandas relacionadas ao CPF. Poucos dias depois, outras notícias davam conta de filas quilométricas na porta das agências da Receita Federal em todo o Brasil, formadas por pessoas que se arriscavam para conseguir se cadastrar ou regularizar a situação junto ao órgão, uma vez que esse foi um dos requisitos exigidos para solicitar o auxílio emergencial de R$ 600 oferecido pelo governo federal. Estamos aqui falando de milhares de pessoas que, até agora, não existiam (ou estavam irregulares) em banco de dados que emite um número dizendo que você é uma pessoa física. Pessoas que não existiam para o estado brasileiro. Essa é a profundidade da desigualdade social no nosso país.

Em Ribeirão das Neves, cidade onde moro, desde segunda-feira há pessoas dormindo na porta das agências da Caixa Econômica Federal. São pais e mães de família que, sem o ganha-pão diário, estão há quarenta dias sem receber um centavo e contam com doações para sobreviver enquanto aguardam o depósito do auxílio emergencial ou a regularização do próprio cadastro nas agências bancárias.  A cidade tem 300 mil habitantes, está na região metropolitana de uma das maiores capitais do Brasil, e possui apenas duas agências de um banco público. Para o estado brasileiro, essa população de centenas de milhares de pessoas é completamente invisível.

A situação é ainda mais preocupante quando observamos as respostas produzidas pelos poderes executivos e instituições públicas. Muitas criaram aplicativos e emails para evitar filas em agências, e os governos tentam emplacar o ensino a distância como uma opção para as crianças e jovens. Entretanto, estamos em país que tem mais de 11 milhões de analfabetos (segundo o IBGE), 83 milhões de pessoas sem acesso à internet (segundo a PNAD de 2019). Quando recortamos os dados somente do estado de Minas Gerais, 54% das famílias não possuem computador em casa, e 24,7% dos habitantes não possuem nenhum acesso à internet (dados da PNAD 2018). Para quem estão sendo construídas essas respostas?

Enquanto deputada estadual, me inspiro e lembro sempre das palavras de Carolina Maria de Jesus: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo”. É um retorno às minhas raízes e aquilo que sou: uma mulher preta, moradora de Ribeirão das Neves, ex-empregada doméstica, educadora infantil e filha de pais analfabetos. É inadmissível para mim esse movimento de manter na invisibilidade as necessidades e o sofrimento dos grupos vulneráveis, compostos majoritariamente por pessoas negras e que vivem às margens da estrutura estatal, que só se faz presente nas funções de repressão, violência e encarceramento.

A presença nos espaços de poder de nossos corpos diversos, marcados pelas desigualdades sociais e pela invisibilidade, é fundamental para construirmos outro modelo de resposta neste momento, que não seja feito pensando apenas na figura vazia do “cidadão médio”, ou ainda, somente na elite. Por isso, nós, da Gabinetona, nos esforçamos para incluir na Lei Estadual nº 23.631/2020, fruto do PL 1.777/2020, de autoria coletiva dos deputados estaduais mineiros, ações para barrar a prática de mais violações de direitos humanos contra a população em situação de privação de liberdade e contra as famílias de baixa renda. E seguimos apresentando alternativas e desenvolvendo propostas de enfrentamento à pandemia em âmbito local e nacional, que levem em consideração as pessoas que estão nas periferias, nas ocupações, os trabalhadores informais, os artistas, os povos e comunidades tradicionais, as comunidades atingidas pela mineração e o fortalecimento do nosso sistema público de saúde. O enfrentamento à pandemia não pode ser uma desculpa para condenar pessoas à fome, à miséria e à morte. A vida está acima do lucro!

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