Uma das muitas consequências da pandemia de coronavírus no Brasil é a circulação da ideia de que os idosos são um problema e, portanto, devem ser tratados como descartáveis. Celebridades e o presidente da República, ironicamente homens que se enquadram nessa categoria pois tem mais de 60 anos, proferiram o discurso que pode ser traduzido da seguinte forma: “Se for para sobreviver que sejam os que têm braços para trabalhar. A economia é nossa razão maior e quem já não está apto a produzir encare as consequências do vírus e pronto”.

No transe da substituição de um ministro da saúde por outro – mais um absurdo na conta dos tempos surreais que o país atravessa – viralizou um vídeo, do ano passado, portanto fora do contexto da disseminação do coronavírus, mas que reforça o discurso do tal “isolamento vertical”, centrado especialmente no confinamento apenas dos idosos. Na produção, o novo titular da pasta, Nelson Teich, afirma que, diante de poucos recursos em tratamento de saúde, para salvar um adolescente em estado crônico ou um idoso, o primeiro tem mais chances, afinal ainda tem muita vida pela frente.

Mais do que chocante e duro esse tipo de escolha em situação-limite jamais vai encontrar respaldo em qualquer aspecto da cultura humanista. Primeiro porque ninguém tem controle sobre determinados parâmetros para determinar, com certeza absoluta, quem está apto para viver ou não. Há vítimas da covid-19 até entre recém-nascidos. Adolescentes já sucumbiram em meio a um quadro clínico que pessoas de 90 anos superaram. Medicina, assim como tudo no planeta, tem lá suas nuances que desafiam o esperado. Trabalha-se, portanto, com prognósticos, probabilidades, mas daí a transformar em regra que velhos podem ser expostos porque já não contam muito para a rotina produtiva revela muito mais sobre a miséria moral a que chegamos como espécie. Isso é ainda mais grave em um país que tem como uma das bases de sua formação os legados civilizatórios que prezam e respeitam todos os estágios da vida, inclusive a infância e a velhice. É assim, por exemplo, nas culturas afro-brasileiras, indígenas e sertanejas que, em muitos pontos são convergentes.

Canção sertaneja e um rito afro-brasileiro

Quando eu era criança minha mãe, Ana Costa Ramos, mas chamada em família e entre amigos de Nazinha, cantava regularmente uma canção que me parece ser de domínio popular e chama-se Couro de boi. Todas as vezes que eu a ouvia, caía no choro. Até hoje essa música me causa uma emoção além da conta porque me remete ao que parece ser o temor de qualquer pessoa no futuro: sofrer abandono perto do fim da vida.

Na narrativa da música, o personagem central é um peão que nos sertões da Bahia chamamos de vaqueiros. Acostumados a um trabalho árduo e pesado, sem quase direitos, esses homens trabalhavam e ainda trabalham, em muitos casos, no prolongamento de um modelo extenuante com jornadas que duram o dia inteiro, vestidos com couro e em meio aos desafios da caatinga que logo no início precisam aprender a conhecer bem. O salário é pago em “meia”, ou seja, a cada quantidade de novilhos nascidos recebem um ou dois, dependendo do acerto. Seus filhos tornavam-se os ajudantes; a mulher e as filhas, geralmente, assumiam as funções de trabalhadoras domésticas na casa grande da fazenda, além de auxiliar na produção de requeijão ou de farinha. Para essas famílias, conquista era sair de uma situação de pobreza extrema para uma mais remediada e o ciclo muitas vezes se repetia. Tirar a sorte grande era esse vaqueiro virar administrador da fazenda. Em muitas das famílias do interior da Bahia e creio que de outros estados do Nordeste, essa foi a realidade de várias gerações. Já aconteceram algumas mudanças, mas o modelo ainda persiste.

Mas voltando à canção, ela narra o drama de um vaqueiro que, depois de criar dez filhos, se vê às voltas com a necessidade de ir morar com um deles. O problema é que a nora impõe, não há descrição dos motivos, a saída do sogro da casa. A narrativa vai ganhando dramaticidade desde que há a comunicação ao velho e sua rendição diante do inevitável. Como uma espécie de mea culpa o filho presenteia o pai com um couro de boi para que se cubra durante as noites duras e frias do sertão quando possivelmente estará dormindo ao relento. Eis que o neto alcança o avô e, com choro emocionado, lhe pede parte do couro. Ao retornar para casa, o menino é interpelado pelo pai sobre o pedido e responde:

Um dia vou me casar/o senhor vai ficar velho/e comigo vem morar/pode ser que aconteça/de nós não ser combinado/ essa metade do couro/vou dar para o senhor levar.

Confira aqui a canção na voz de Tonico e Tinoco.

É um desfecho, portanto, semelhante às fábulas de Esopo ou dos oriki, os poemas iorubás, que contam as narrativas sobre as trajetórias dos orixás de uma perspectiva mais filosófica, ou seja, para levar à reflexão. Um deles relata, possivelmente, as origens de uma das celebrações mais bonitas dentre as muitas que compõem as religiões afro-brasileiras, como o candomblé: As Águas de Oxalá.

Durante o rito, vestidas e vestidos de branco, filhas e filhos de santo, vão até uma fonte – no caso dos poucos terreiros que ainda dispõem da sorte de contar com mananciais em seus espaços cada vez mais reduzidos devido à especulação imobiliária – e carregam água em recipientes de barro equilibrados em sua cabeça. Tudo é feito em meio a muita solenidade para reverenciar o orixá que é considerado o pai de todos, dono da sabedoria exatamente por conta da sua condição de “mais velho”.

A cerimônia, conta o poema-mito, foi resultado de um grande mal entendido que cerca uma viagem de Oxalá para visitar seu filho, Xangô. Antes de sair, ele é avisado pelo oráculo que o caminho será cheio de obstáculos, mas já tomou sua decisão e decide partir assim mesmo. Além disso, não faz nenhum tipo de rito propiciatório e assim vai encontrando algumas dificuldades que o obrigam a trocar as três peças de roupa que tinha levado. Quando chega ao seu destino, nos limites do reino de Xangô, está com as vestes sujas – ele só usa roupa branca – e com alguns rasgões. É então que reconhece o cavalo que pertence ao deus do trovão e da justiça e decide aproximar-se pois o animal o conhece. Só que os guardas reais o confundem com um ladrão que quer se apropriar do cavalo real e o jogam na prisão.

A partir de então o reino de Xangô passou por sete anos muito difíceis: as colheitas não prosperavam. Havia fome e desespero por toda a parte. Xangô resolveu consultar o oráculo e o resultado foi um choque: soube que no seu reino, onde imperava a justiça, havia um velho preso por conta de um erro. O rei se dirigiu apressadamente à prisão e para o seu horror encontrou o pai extremamente fragilizado e humilhado em meio aos anos de cárcere. Xangô carregou Oxalá nas costas e o levou até o centro da cidade. Ordenou que fosse preparado um banquete, mas antes todos deveriam trazer potes com água para lavá-lo e, em silêncio, como um  grande pedido de desculpas.

Imagem: Anton Antanasov / Pexels

Nos terreiros, a presença de Oxalá, em sua face mais velha, quando é chamado de Oxalufã, é acompanhada por uma aura de respeito dobrado. Os cânticos e toques para ele enchem de beleza sua dança tranquila e apoiada em seu cajado, o opaxorô. É a reafirmação de que a velhice também pode e deve ser celebrada.

Lições ancestrais

Na minha convivência no sertão e agora em uma comunidade de candomblé observo como essas culturas, que também tem muito da herança indígena, reservam um lugar altivo para os mais velhos. Não é um tratamento assistencialista, mas de fazê-los participar ativamente das rotinas. Um vaqueiro idoso pode não aguentar mais subir no cavalo de campo que passou dias amansando, mas é consultado sobre o melhor tratamento para a “bicha” que atacou a rês ou sobre aquela reza que aprendeu para afastar cobras do rebanho que toma conta.

Os mais velhos no candomblé integram conselhos, reforçam e informam sobre dados históricos e de afirmação de suas comunidades. Eles ensinam sobre cantigas, narram com maestria os mitos, cantam e dançam com vigor mesmo depois de um dia em que ajudaram nos preparativos para a parte pública das festas em honra das divindades. Idoso em candomblé só fica afastado se realmente não aguentar mais participar da rotina por algum impedimento físico. Mas, geralmente, nessa situação vai contar com o amparo do carinho e da preocupação dos membros de sua comunidade. Assim tenho visto e aprendido no Terreiro do Cobre de onde tenho a sorte e honra de ser iaô.

Essas memórias e experiências enchem o meu coração de tristeza quando vejo imagens em países europeus e nos EUA sobre a devastação que a covid-19 tem feito em abrigos de idosos. Nesse tipo de equipamento estão sendo produzidas imagens angustiantes onde aparecem os parentes que não podem se despedir dos seus adequadamente. Chegam notícias de corpos encontrados nas camas desses locais, na casa das dezenas, diante do colapso dos sistemas de saúde em vários países.

No Brasil, a maioria expressiva das nossas idosas e dos nossos idosos ficam até o fim dos seus dias em suas casas amparados por parentes. É um luxo poder pagar até mesmo uma cuidadora ou cuidador para os auxiliar nos procedimentos que dão mais conforto e dignidade. Instalá-los em abrigos especializados é raro em um país onde a pobreza voltou a ser  regra. Mas por outro lado também temos esse viés cultural de não isolarmos as nossas velhas e nossos velhos a não ser em casos extremamente graves.

Os que fazem o discurso desumanizante contra idosos cometem mais um erro, além do já terrível de que uma vida pode ser dispensável: eles não são um “peso” para a economia. Pelo contrário. Tanto nas comunidades pobres das grandes cidades como pelo vasto interior dos estados brasileiros, um número expressivo de famílias tem como renda indispensável a contribuição dos seus membros mais velhos. O dinheiro da aposentadoria em muitos casos é um alívio, pois veio em tempos em que não se tinha uma força-tarefa do sistema financeiro para disseminar a narrativa de que o valor pago à maioria dos aposentados é um problema para o país, sem considerar outras variantes.

Além disso, tem muito idoso – se levarmos em conta que essa categoria é para quem tem idade a partir de 60 anos – em plena atividade nos variados segmentos profissionais. Conheço um médico excelente e em pleno vigor aos 76 anos. Ele tem uma abordagem totalmente humanista em relação aos seus pacientes de fazer a investigação cuidadosamente dos sintomas por meio de consultas com duração de mais de uma hora. Sem falar em professoras e professores, especialmente os de nível superior, que estão chegando ao ápice das suas carreiras, especialmente em pesquisa de excelência ao alcançar a faixa dos 50 anos ou mais.

Tem também as avós que são as chefas de famílias que há muito não contam com um “provedor”. Muitas delas trabalham na informalidade – vendem roupas, cosméticos e lanches na porta de escolas – ou formam os batalhões no trabalho doméstico, em sua maioria sem direito a quarentena, pois, infelizmente, ainda é raridade quem as dispensou e paga seu salário assim mesmo respeitando esses tempos duros. Diariamente, entre uma faxina e outra, essas mulheres conseguem ajudar suas filhas na educação dos netos. Isso quando não esgotam as possibilidades criativas para estar com eles – organizando seu trabalho nos turnos em que eles estão na escola, por exemplo – para que as filhas possam trabalhar.

Mesmo na classe média tem muito jovem descolado experimentando ser youtuberinstragammer ou sonhando com sua start up, porque vovó está ajudando a pagar seu curso de luxo ou aquele equipamento da hora com a aposentadoria que ela recebe porque para articular melhor a renda familiar foi morar na casa dos filhos. Portanto, esse raciocínio rasteiro de que “velhos já viveram muito e por isso ficam em desvantagem diante de jovens na priorização de cuidados em caso de internamento de alta complexidade” não apenas revolta, mas só demonstra a falência de qualquer traço de empatia com a coletividade nesse ambiente dos chamados “homens públicos”.

Ocupantes de cargos públicos, principalmente, deveriam  ter muito cuidado com as suas palavras. Aprendi tanto no ambiente sertanejo como no de candomblé que se deve manter sob vigilância o que a “boca espalha”. As palavras costumam ser dotadas de muito poder e isso se comprova em vários sentidos, inclusive do ponto de vista do que um discurso – dependendo da posição de quem o profere – pode causar tanto para o mal como para o bem. É necessário muito cuidado ao referendar ideias que tornam descartáveis os que têm mais idade. Nem a biologia consegue levar a lei de que sobrevive o mais forte porque é jovem até as últimas consequências, afinal quem “vê corpo não vê as conexões do sistema”, ou seja, tem gente que aparentemente está cheia de vigor, mas internamente está por um fio. Cuidemos das palavras que proferimos, pois da mesma forma que curam elas também machucam. Imaginem para uma avó ou avô escutar que tem que ser adotada uma estratégia para liberar os mais jovens para voltar a circular livremente e que as famílias se virem para proteger seus velhos dos riscos da contaminação.

Deve ser muito duro para alguém escutar que se tornou um estorvo para manter a roda girando. Mas, se ela gira, significa também que quem é jovem hoje, se tiver sorte, vai ser o velho de amanhã, como ensina o menino da canção-sertaneja citada anteriormente. E que mais um ditado do povo do candomblé sirva também para reflexão e aprendizagem: “Antiguidade é posto”.

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