Linchamentos virtuais

Linchamentos virtuais

Em pleno golpe, a direita organizada, as reformas golpistas sendo aprovadas a toque de caixa, até o risco de adiamento das eleições presidenciais foi objeto de debate recente.

O momento é de unificação da esquerda. Se não nos unirmos, todas as pautas reacionárias que ameaçam vulnerabilizar a classe trabalhadora serão aprovadas sem dificuldade, prejudicando, aliás, em especial as mulheres e os negros, como é o caso da reforma da previdência.

A luta contra o machismo e contra o racismo são sim importantes e urgentes. Porém, não podemos fragmentar a esquerda com brigas internas como as que testemunhamos na última semana com a militância do movimento negro reagindo a um post da Elika Takimoto considerado racista. Ou com a denúncia feita pela ex-companheira de Freixo de que ele é machista. Os linchamentos virtuais promovidos pelas feministas e pelos negros e negras com acusações muitas vezes exageradas de machismo ou racismo ameaçam não apenas segregar a luta em torno da pauta “nenhum direito a menos”, mas ameaçam inclusive afastar nossos aliados de luta. E, sinceramente, não é o momento de afastarmos nossos aliados. O grito do momento é o de UNIFICAÇÃO DA ESQUERDA.

Amigo, se você estava concordando até aqui, apenas PARE. Mas não pare de ler.

A dica de ouvir a outra parte com boa vontade não vale apenas para as feministas e para a militância do movimento negro: vale para você também, que andou pregando mais amor e menos linchamentos nas redes sociais.

Eu sou uma ínfima parte da “outra parte”. A que é considerada “radical”. E quero te convidar a me escutar.

Você quer a unificação da esquerda. Ótimo. O problema, amigo, é que você está fazendo isso errado.

Eu também quero a unificação da esquerda. Só que eu quero outra unificação. Uma unificação que começa apontando a necessidade de combatermos o golpe com todas as nossas forças.

[Se você acredita que não houve golpe no Brasil e que estamos vivendo um regime de normalidade democrática, já está liberado para deixar de ler meu texto; ele não vai te interessar. Se você acredita que houve golpe e é preciso combatê-lo, avance uma casa]

A unificação da esquerda que defendo começa pela necessidade de combater as forças neoliberais que se apoderaram do país. Mas não para aí.

Vou te convidar para um brevíssimo resgate: no segundo mandato do governo Dilma, no qual votamos ao menos no segundo turno, fizemos uma exigência de radicalização das pautas, a famosa “guinada à esquerda”, que contemplava a necessidade de abraçar uma série de pleitos que haviam sido colocados de lado em razão de uma necessidade de conciliação interna ao pacto de governabilidade.

Nossa insatisfação vinha se manifestando desde as jornadas de junho de 2013 [comparar o Movimento Passe Livre – MPL com MBL é um erro acentuado de avaliação política, mas foge aos propósitos deste texto falar sobre isto] e o #nãovaitercopa, com toda sua crítica contundente à falta de participação popular nos megaempreedimentos do PAC (muitos dos quais ligados às construtoras que estão na raiz das denúncias de corrupção e desvio de dinheiro público), passando pela crítica ao apoio ao agronegócio na base do governo Dilma, à dizimação dos povos indígenas e o papel da hidrelétrica de Belo Monte nesse processo, até o genocídio da juventude negra, massacrada pela polícia e pelas políticas racistas do estado.

Aliás, vale lembrar que quem não quis “conciliação de classes” não fomos nós. Foi a direita, que deu um golpe de estado para impor a agenda neoliberal no Brasil. Acho que não há mensagem mais clara de que não se quer conciliação do que um golpe.

Pois bem. Consumado o golpe, há um ano, a esquerda caiu em um profundo fosso depressivo. Não conseguíamos acreditar no que víamos. Estávamos viajando para um passado ao qual jamais pretendíamos voltar. Num primeiro momento, nossa reação foi chorar, literal ou simbolicamente. Não tenho um amigo ou amiga de esquerda que não tenha ficado abatido.

Mas não ficamos passivos em nenhum momento durante todo esse processo. Fomos às ruas. ÀS RUAS. O lugar por excelência da disputa política e democrática.

E quem estava à frente desses movimentos de resistência? Duas grandes frentes: Frente Brasil Popular e Frente do Povo Sem Medo. Com forte. Deixa eu frisar: FORTE protagonismo dos movimentos feminista e negro. Forte participação de todo mundo que havia se sentido silenciado e oprimido nos últimos tempos.

Lembro de ter lido o post de um aluno. Ele dizia que era filho, neto e bisneto de mulheres negras que sempre resistiram. Em quilombos, em terreiros, na periferia. Ele não precisava aprender o sentido da resistência. Ele tinha nascido da resistência.

É como se disséssemos: OK. A esquerda “de vocês” não deu certo. A conciliação de classes fracassou. Agora vamos fazer o movimento de resistência do nosso jeito. E do nosso jeito uma pauta não pode ser barganhada por outra. Nenhuma pauta vai ser rifada. Todas as pautas – feminista, negra, indígena, ambientalista, LGBT – todas serão incluídas no nosso pacto de resistência ao golpe.

Um ano depois estamos novamente brigando entre nós, enquanto a direita segue em frente.

O que está errado?

Vou voltar ao tema que originou este texto: Elika Takimoto sendo acusada de racismo, Freixo de machismo, Cynara Menezes sendo também acusada de racismo. Todos esses dedos apontados nos causaram profundo desconforto, pois esses nomes são referências para muitos é muitas de nós.

1. Elika Takimoto

Elika Takimoto, autora de um importante blog de esquerda, escreveu um post racista e foi criticada à altura. Com a ajuda de muita gente que foi aos comentários do texto explicar para Elika que o texto era racista, ela reconheceu seu erro, apagou o post e escreveu um pedido de desculpas.

Eu, mulher branca, li o pedido de desculpas de Elika e o achei sincero e tocante. Penso que esse foi o sentimento de quase todos os brancos e brancas que leram o pedido. Talvez porque o pedido fosse mais dirigido a justificar como é fácil cair na armadilha do racismo estrutural e sistêmico do que propriamente a se desculpar.

O fato é que muitos homens e mulheres negros não se sentiram contemplados como nós, brancos. As críticas continuaram e Elika acabou apagando temporariamente sua conta no facebook.

Sensibilizados, muitos leitores da Elika acusaram a militância negra de agressividade e de promover um “linchamento virtual”. O uso da expressão “linchamento” encadeou novos debates. Afinal, o linchamento dos negros no Brasil não é virtual; é real e físico.

2. Cynara Menezes, Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro

Na mesma semana, uma discussão envolveu importantes mulheres da base da esquerda brasileira [não trouxe minha régua de esquerdismo para medir ninguém; então vou colocar todas as pessoas acerca de quem estou escrevendo como ligadas ao campo progressista da esquerda].

Cynara Menezes, autora de um dos blogs mais lidos da mídia de esquerda, o Socialista Morena, criticou a escrita de Stephanie Ribeiro, um nome importante da militância feminista e negra. Cynara foi acusada do racismo escondido atrás do preconceito linguístico. Djamila Ribeiro, outro grande nome do movimento feminista e negro, saiu em defesa de Stephanie.

Prints dos piores momentos da discussão circularam livremente pela internet. Não entre a direita. Mas justamente entre a esquerda que tem clamado pela unificação da luta. O objetivo da exposição dos prints era, sem dúvida, desqualificar as três mulheres, reduzindo-as àquela discussão, tratando-as como infantis e outros atributos normalmente utilizados para duvidar da capacidade intelectual e política das mulheres. Afora a falta de honestidade intelectual de quem pretendeu reduzi-las a um momento de uma trajetória muitíssimo mais ampla, a misoginia por trás dos desaforos que acompanhavam os prints mal conseguia ser disfarçada.

3. Marcelo Freixo e Priscilla Soares

No mesmo dia em que publiquei artigo sobre o machoesquerdismo, tornou-se pública a carta da ex-companheira de Marcelo Freixo denunciando o machismo do parlamentar, um dos mais importantes ícones da esquerda atual. Ela denunciava a forma como o ex-companheiro havia exposto o fim da relação entre amigos e militantes, falseando uma posição de vítima e colocando-a como algoz do relacionamento.

Todas essas denúncias simultâneas de racismo e de machismo envolvendo nomes conhecidos ligados à esquerda fizeram a internet surtar.

Um grande coro ecoou: “não devemos rachar a esquerda. O momento é de união. Abaixo os tribunais de inquisição das redes sociais. Abaixo linchamentos e exposições excessivas e desarrazoadas. Isso apenas serve à desagregação da luta e ao afastamento dos aliados.”

E voltamos ao início do texto: Sim, todos e todas queremos a união das esquerdas. Mas qual união queremos?

Sou radicalmente contra tribunais de inquisição nas redes sociais. Eles violam princípios básicos nos quais acredito, como o princípio do contraditório, que impõe a necessidade de sempre ouvir a outra parte.

Voltamos a concordar? Não estou certa disso.

Porque eu estou me referindo ao tribunal de inquisição contra a militância negra e feminista. Afinal de contas, se feministas e antirracistas promoveram seus tribunais inquisitoriais, não é menos certo que foram ao mesmo tempo vítimas das fogueiras acesas em nome da “unificação”.

O fato é que feministas e negros e negras – que carregam em sua história a violência do silenciamento – estão sendo mandados novamente a silenciarem-se em nome da união da esquerda.

Vou usar a fala belíssima de Nara Takimoto, filha de Elika:

“Não houve exageros, não houve falta de interpretação. Houve racismo. […] Gostaria de agradecer a todos os negrxs que, mesmo o caso sendo grave, se mostraram abertos ao diálogo e a ajudar. Está sendo muito importante a fala e ajuda de todos vocês.”

Sim, Nara saiu em defesa das pessoas que criticaram a própria mãe. Compreendeu que sem essas denúncias, o racismo do texto de Elika teria continuado despercebido.

Uma postura bem diferente da de quem, sob o pretexto de sair em defesa de Elika, taxou os negros de agressivos em suas reações, o que notoriamente reforça todos os estereótipos racistas acerca do suposto comportamento perigoso dos negros.

Aliás, hoje, enquanto concluía meu texto, Elika Takimoto voltou ao facebook com um belo vídeo, reformulando seu pedido de desculpas, reconhecendo com todas as letras que foi racista e com uma mensagem de agradecimento a quem a defendeu, mas dizendo ser necessário ouvir (de verdade, e não apenas protocolarmente) quem se sente discriminado pela fala ou gesto de outrem.

Infelizmente, nem todos e todas tiveram a postura de Elika teve ao se reconhecer racista.

A impressão de se sentir acuado entre as acusações de racismo e de machismo despertou a ira de uma esquerda que não aceita mais ser constantemente vigiada e virtualmente punida e linchada.

OK. Eu entendo o medo de ser tachado de racista. Sem ironias. Eu entendo de verdade. E também não sei em que momento a metralhadora vai apontar para mim. Eu nasci e cresci numa sociedade sistêmica e estruturalmente racista. Não sei o quanto do meu comportamento colabora para a perpetuação do racismo. Não tenho plena consciência dos meus privilégios de mulher branca. Faz bem pouco tempo que percebi que entre meus maiores privilégios estava o fato de nunca ter precisado a ensinar meu filho a como reagir a uma abordagem da polícia e nem a como responder caso ele fosse considerado suspeito de furtar algo. Isso nunca sequer passou pela minha cabeça.

Por extensão, faço uma ideia de como é ter medo de ser apontado como machista.

Porém, a verdade é que sem as denúncias de racismo, Elika não teria percebido que seu texto era racista. E a prova disto é que o texto havia sido escrito um ano antes. Ela e seus leitores haviam julgado que o texto era lindo. Foi necessário que alguém fizesse a tão temida e necessária “problematização” para que se pudesse fazer a leitura da discriminação que ele continha.

E os excessos? Por que continuarem as críticas depois que Elika pediu desculpas? Vou repetir o que disse Nara, filha de Elika: não houve excessos. A reação, em sua maioria didática e explicativa, foi necessária à revisão da postura de Elika.

É legítimo exigir de uma formadora de opinião do campo progressista que ela não seja mais uma a engrossar o caldo racista, caldo que se cozinha no silêncio e com a nossa cumplicidade.

Por mais que tenhamos medo de cair no fosso do racismo e sequer percebermos, como aconteceu com a Elika, não vai ser pedindo para não sermos julgados e julgadas por nossos eventuais atos ou falas racistas ou machistas que vamos avançar no combate às opressões.

E não. Não é apenas o Bolsonaro que é racista e machista. Nós somos também. A grande diferença é que Bolsonaro bate no peito com orgulho por todas as opressões que ele prega. Bolsonaro opressor chega a ser um meme da internet.

Mas se alguns setores da nossa esquerda estão clamando para não admitirem calados as acusações de racismo e de machismo, parece que a grande distinção entre Bolsonaro e essa esquerda branca e macha está começando a ruir.

Em nome de uma hipócrita defesa da unificação da esquerda, começa a surgir um “orgulho de ser branco, de ser macho, de ser hétero” no campo da esquerda.

Ironia das ironias é que essas vozes têm o topete de se autoproclamar antifascistas.

Não, querides. Não caiam nessa armadilha. Essas são as novas vozes de um velho e conhecido fascismo. Homens não estão sendo silenciados. Brancos e brancas não estão sendo silenciados.

Estão aprendendo a dividir um espaço que sempre foi hegemonicamente branco e masculino. Alguns aceitam o desafio desse aprendizado com grandeza de espírito, enquanto outros ainda se mostram reativos.

O que eu enxergo nesse debate que permeou nossa internet na última semana é o embate entre dois grupos: um grupo apela para que os movimentos feminista e negro sejam menos radicais e parem de afastar aliados.

Ora, esse é um jogo retórico: ao dizer aos grupos historicamente oprimidos que não devem afastar aliados, pretendem, na verdade, obter um salvo conduto para não serem acusados de praticar atos (aí incluídas falas).

Penso até ser sincero por parte de alguns este questionamento sobre se a radicalização das pautas identitárias, feminista e negra, não estará levando a esquerda a um “racha”. Mas nem todos estão sendo sinceros. Li alguns textos que soaram ameaçadores. É como se dissessem:

“Tentamos ser feministas. Tentamos ser antirracistas. Tentamos ser seus aliados. Mas agora vocês dizem que se não dividirmos o trabalho doméstico com a mãe ou com a companheira somos machistas. Que se não dividirmos o trabalho de educação dos filhos somos machistas. Que se dizemos que uma negra escreve mal ou não sabe segurar um lápis somos racistas. Que se reclamamos da lacração de algumas negras somos racistas. Deveriam agradecer nosso apoio. Mas preferem exigir coisas além do que estamos dispostos a ceder. Então no lugar de aliados preferem nutrir adversários”.

Um estudante de direitos humanos escreveu um texto incitando seus leitores a não permanecerem passivos e calados diante do que chamou de “fanatismo identitário dos justiceiros sociais”. Aproveitou para reclamar da “lacração” de Djamila Ribeiro e questionar suas credenciais. Um outro escreveu que Djamila deveria ser responsabilizada pelo vazamento de dados pessoais de Elika nas redes sociais.

Os mesmos homens que estavam criticando os “tribunais do facebook” eram os mesmíssimos homens que estavam acusando e condenando Djamila Ribeiro pelo grave crime de lacração. Afinal, onde já se viu uma mulher negra se achar linda? Ter uma larga produção acadêmica? Ser convidada para palestrar em Oxford? E ainda por cima lacrar na internet? Essa preta tem que voltar pra senzala social. Porque ela está ofuscando homens brancos em áreas em que eles nunca se sentiram ameaçados ou disputando com uma preta antes. E isso é grave.

Do outro lado, o grupo acusado de “radicalismo” apela para que a esquerda e todos os aliados rechacem firmemente o machismo, o racismo, a homo e transfobia e todas as demais formas de opressão. E não se priva de denunciar racismo, machismo, homo ou transfobia no nosso campo da esquerda. Aliás, eu diria que esses grupos estão mais preocupados em garantir que essas opressões sejam expurgadas da esquerda do que da direita, onde lhes parece ser menos incoerente que existam.

É como se dissessem:

“Que esquerda é essa que silencia (e nos pede silêncio) quando estamos diante de atitudes e falas racistas, machistas, homo ou transfóbicas?”

TEMOS AQUI DOIS GRUPOS QUE DISPUTAM O SENTIDO DE SER ESQUERDA. DOIS GRUPOS QUE DISPUTAM A UNIFICAÇÃO DA PAUTA DA ESQUERDA. Um pela diminuição da importância das pautas identitárias e outro pela inclusão inequívoca dessas pautas.

Acreditar que existe um grupo imparcial conclamando à unificação da esquerda em nome de interesses universais é tão falacioso quanto acreditar que Sergio Moro é um juiz imparcial.

É hora de tomada de posição. É hora de pressionar a esquerda avante. “Chega de retrocessos” é uma frase que vai muito além de barrar o golpe e suas reformas neoliberais.

Chega de retrocessos é uma disputa de sentidos da própria esquerda. E você está sendo chamado a tomar lado.

Queremos você conosco na luta. E isso não garante que você estará na zona de conforto de quem vai ficar acima de críticas. Ao contrário. Você também está sendo chamado a lutar contra o racismo, o machismo e outras opressões que estão nos espaços em que você vive. E esse espaço pode ser, inclusive, você mesmo.

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