Que lições podemos tirar de uma pandemia global?

“Mas ando e penso sempre com mais de um,
por isso ninguém vê minha sacola”
Mistério do Planeta – Luiz Galvão e Moraes Moreira

Antes mesmo de fazer a primeira vítima fatal no Brasil, no dia 17 de março, a pandemia global do coronavírus já tinha acertado em cheio o mercado brasileiro da música. Eventos, casas de espetáculos e editais de cultura foram os primeiros atingidos diretamente, com uma avalanche de cancelamentos, que levou à completa paralisação da principal fonte de receita de artistas e produtores.

Esta decisão é necessária e fundamental para o controle da pandemia e tem inclusive recebido apoio e adesão de praticamente 100% dos artistas. Diferente de outros setores da economia brasileira, felizmente ainda não tivemos nenhum grande empresário ou artista se manifestando publicamente pelo fim da quarentena e a volta à “normalidade”, o que seria neste momento um profundo ataque a saúde pública, e estímulo ao aumento exponencial do número de mortes.

Ao mesmo tempo que esta consciência norteia a classe, unindo-a num momento como este, as angústias e preocupações com relação ao que fazer tomam conta de boa parte do setor, principalmente dos pequenos e médios artistas, produtores e técnicos. Por isso, imediatamente ao início da onda de cancelamentos das atividades artístico-culturais surgiram grupos de Whatsapp e Telegram, campanhas, e uma enxurrada de posts e comentários pelas redes sociais questionando: O que podemos fazer agora? Como vamos sobreviver?

Ao nos depararmos com um problema desta magnitude o primeiro ponto que surge consensualmente é que ninguém vai conseguir uma solução sozinho.

Bingo!

O peso de uma pandemia e de uma crise deste tamanho nos obriga necessariamente a colocarmos em perspectiva a necessidade de processos coletivos para a busca de soluções individuais. E neste sentido somos obrigados a entender o papel do Estado na promoção das políticas e a sua importância fundamental na economia, regulação e organização social e política do país.

Estes dois pontos atacam diretamente as bases da organização da sociedade global capitalista e o neoliberalismo que ganha força como corrente ideológica a partir dos anos 80. E aí é preciso fazer um resgate histórico para os mais jovens e que não acompanharam de perto o mercado da música independente neste século.

Infelizmente, nos últimos 10 anos, este tipo de pensamento neoliberal e a criminalização de movimentos e lideranças que representam a ação coletiva dentro da música independente contribuíram para a estagnação do setor e uma centralização das oportunidades e protagonistas.

Vale lembrarmos que na primeira década deste século, o Brasil foi referência global tanto na organização coletiva do setor musical como no diálogo para a construção de políticas públicas entre a sociedade civil organizada e o Estado. Experiências como a ABMI (Associação Brasileira de Música Independente), a ABRAFIN (Associação Brasileira de Festivais Independentes) e a rede de coletivos culturais Fora do Eixo emergiram nos anos 2000, estimuladas por este cenário de valorização do trabalho associativo e colaborativo, e na busca de soluções coletivas para a cadeia produtiva da música

Este contexto levou a consolidação da REDE MÚSICA BRASIL, que reunia aproximadamente 15 entidades e movimentos nacionais em articulação direta com o Ministério da Cultura, naquele momento conduzido por Gilberto Gil. Pela primeira vez o MINC reconhecia a centralidade da cultura na sociedade, a partir de uma perspectiva antropológica e antropofágica, e isso gerou um acúmulo gigante em direção a um sistema nacional da música, com adoção de políticas públicas e articulação de esferas de diálogo entre o poder público e a sociedade civil.

Esta experiência foi replicada em estados e municípios brasileiros que se empenharam em criar Fóruns Setoriais e programas governamentais de apoio a música, o que levou a um aumento exponencial de coletivos, festivais, feiras, e casas de shows espalhados por todo o país, nas quais os artistas se apresentavam, realizavam turnês, vendiam seus produtos e formavam público.

O caráter coletivo e a existência de uma política nacional para a música permitiram um processo inédito de descentralização da produção no Brasil, que passou a ter outras referências regionais e não mais depender apenas do eixo Rio-São Paulo. De repente, no ano de 2008, uma banda independente de Cuiabá, como o Macaco Bong, era a vencedora do prêmio de melhor disco do ano da revista Rolling Stone. O ineditismo dessa experiência era afirmado politicamente pelo fato do disco se chamar “Artista Igual Pedreiro” e a banda fazer parte do pioneiro Espaço Cubo, coletivo que deu origem a rede Fora do Eixo.

A presença de artistas de estados como Acre, Amapá, Paraíba, Goiás, Mato Grosso e de cidades do interior do Brasil em grandes festivais, e em premiações do mainstream musical, passou a ser uma realidade conquistada justamente pela desenvolvimento de plataformas coletivas, e por uma política governamental que conseguiam distribuir protagonismo e estímulo para que estas iniciativas se desenvolvessem em todo o país.

Todo este processo, como se sabe, foi acompanhado também de muita polêmica e disputa. O surgimento da música digital colocava em xeque o modelo estruturado e coordenado pelas grandes gravadoras e produtoras estabelecidas no eixo Rio-São Paulo, e isso se chocava diretamente com a própria lógica que começava a se impor, mais livre e dinâmica.

De repente era um momento em que todas as portas estavam abertas para a criação de um novo mercado, e o que é mais interessante, com todo mundo podendo participar. Não existia mais “normal”, e era possível inventar o futuro que não estava mais determinado por uma estrutura consolidada e previamente definida. Não era mais preciso fazer parte de uma gravadora para fazer música. E isso mudou tudo…

Não tenho a intenção de romantizar este período, como se todas as respostas para o nosso futuro já estivessem dadas naquele momento. Até mesmo porque, hoje, estas possibilidades são ainda maiores. Por isso é muito importante observar de forma consciente os processos construídos e pelos quais passamos no momento em que o Estado brasileiro nos permitiu mais oportunidades. Momento aquele, também, em que estávamos coletivamente muito mais preparados do que hoje para enfrentar os desafios de um setor tão importante, como é a música, e tão representativo da potência do Brasil no Mundo.

É certo ainda, que devemos rever as nossas posições – sem cobranças ou demonizações -, em forma de autocrítica e conscientização, de que em determinado momento o discurso neoliberal e individualista se impôs sobre a música independente, antes mesmo da onda conservadora tomar conta de todo o país a partir de 2015.

Os ataques às experiências coletivas e colaborativas e a criminalização da relação da sociedade civil com o Estado pelo próprio setor musical foram decisivos para a dispersão das experiências coletivas e das políticas públicas. Isso explica porque este segmento foi tão insignificante no cenário das lutas políticas em 2013 e, posteriormente, no golpe de 2016 e na eleição de Bolsonaro em 2018. Isso explica também a completa inoperância diante o desmonte do Ministério da Cultura e a extinção completa das políticas culturais no Brasil.

Esta é a ficha que precisa cair, especialmente agora, quando os efeitos da crise se impõem já nos primeiros dias de quarentena, como podemos perceber. Por outro lado, novas experiências colaborativas já estão em curso, como é o caso do Festival Fico em Casa BR. Não é por acaso que a organização deste festival reuniu produtores e artistas que tiveram um papel importante nas experiências que marcaram o início do século XXI no Brasil, e a sua produção conta com ferramentas e modelos de trabalho desenvolvidos neste período. As primeiras três edições reuniram mais de 200 artistas em 150 horas de música ao vivo pelas plataformas digitais, e contribuíram com o processo de conscientização da população sobre a importância da quarentena e do isolamento social. E dezenas de outras iniciativas colaborativas, assemelhadas a esta, pipocam pelo país alimentadas pelos mesmos princípios e conexões.

A necessidade deste resgate histórico não se realiza apenas para questionar atitudes do passado, ainda que não possamos esquecê-las. Significa antes, um chamado para que possamos atentar para o desafio do presente e principalmente do futuro. A solução coletiva e a luta para garantirmos um Estado forte e presente no desenvolvimento da cultura brasileira, não podem ser apenas gatilhos em momento de crise, e, sim, compromissos permanentes de todo o setor não só com o futuro da música, mas com construção de uma sociedade mais justa e solidária. Nesta hora, em que o presente nos foge, temos ainda a possibilidade de olhar para o futuro a partir de outras lógicas e perspectivas.

O quadro de desalento pelo qual passa a humanidade requer dos artistas e da música o seu melhor, a capacidade de sensibilizar e sugerir novos olhares para o cotidiano e para a vida. Novos mundos e novas economias. Um novo mercado. Uma nova vida. É exatamente isso que fizemos na música brasileira na primeira década deste século. E é isso que devemos voltar a fazer agora.

Para terminar deixo a provocação do amigo e parceiro Pablo Capilé, postada recentemente no Facebook, e que soa como um chamado neste momento…

#ArteCura #MusicaSalva #VamosMudaroPlanetaComNossaMúsica #Imagine

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