Mesmo infectado pelo coronavírus, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), abandonou o isolamento e retomou as suas atividades no Palácio do Planalto. Sua imprudência explica-se pela disputa por espaços no poder e de influência sobre o presidente Bolsonaro, sob fortes pressões.

Aproveitando-se de estarem, neste momento, todas as atenções voltadas para a epidemia, Heleno encabeçou a elaboração de uma resolução, na semana passada, do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB), de caráter interministerial, visando implementar o acordo Brasil-Estados Unidos para a utilização da base espacial de Alcântara, no Maranhão. De cara, a diretriz interministerial determina a remoção de comunidades quilombolas que vivem há séculos numa área contígua à base militar. Estima-se que serão atingidas 800 famílias, de 30 comunidades.

A resolução prevê a realização de uma consulta às populações afetadas, prevista na Convenção 169 da OIT, a Organização Internacional do Trabalho, mas já determina aos ministérios da Agricultura, Cidadania, Saúde e Educação uma série de providências para a remoção e o reassentamento dos quilombolas. Significa que o GSI não está considerando a possibilidade de uma negativa dos moradores nessa consulta. As comunidades de Alcântara têm o seu próprio protocolo, que define como elas querem ser consultadas, mas a resolução não o menciona e não explica como e quando se realizará a consulta.

Em 1983, quando a base foi instalada, 312 famílias de 23 comunidades quilombolas foram transferidas compulsoriamente para áreas próximas, ficando distantes das suas fontes tradicionais de alimento e renda, aumentando a pressão sobre os recursos das famílias que as acolheram. Nos termos do art 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, as terras ocupadas pelos quilombolas agora ameaçados já deveriam estar tituladas e a sua remoção só seria possível de comum acordo e mediante compensação por outro território equivalente, preservando-se a integridade do modo e das condições de vida, conforme os seus costumes.

A remoção determinada por Heleno liberaria toda a área litorânea para uso exclusivo da base, removendo os quilombolas para locais distantes dos recursos pesqueiros indispensáveis à sua segurança alimentar. A resolução menciona que haveriam corredores de acesso ao litoral controlados pelos militares. Não há uma avaliação do impacto que a pretendida ampliação do uso da base poderá causar nas fontes de alimentos do litoral.

Imagine, agora, a situação dos quilombolas de Alcântara. Suponha que você esteja cumprindo isolamento na sua casa e receba a notícia de que você e sua família serão removidos para um lugar incerto. E que essa remoção te afastará dos meios que provêm o seu sustento e te levará para um lugar que é de outros. Considere que virão te consultar, não se sabe como, mas já sabendo que não poderá dizer não, o que te sujeitaria à retaliação.

Você sabe porque a área da base, que já dispõe de 9 mil hectares subutilizados, precisa avançar sobre terras ancestrais? Quais são os investimentos que justificarão isto? Pode o governo alarmar às comunidades justamente no momento que todos se afligem com uma pandemia por si só ameaçadora? Porque o general Heleno abandonou o isolamento para golpear direitos dos quilombolas nesse momento? Se fosse com você, você diria sim?

O mínimo que seria de se esperar é que o governo, antes de editar essa resolução, esclarecesse à sociedade, em geral, e aos quilombolas, em particular, o que exatamente se pretende fazer nessa base, como se exercerá a soberania brasileira no âmbito desse acordo, considerando a possibilidade de convivência das comunidades com essas atividades. E que respeitasse, em qualquer hipótese, o direito à consulta livre, prévia e informada, que inclui o direito de dizer não. Vale muito pouco o sim de quem não pode dizer não. O primeiro passo para iniciar esse diálogo seria a finalização do processo de titulação das comunidades quilombolas, que já tem seu Relatório de Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado.

A Câmara dos Deputados, ao aprovar o acordo Brasil Estados Unidos, entendeu que caberia ao Executivo, e não ao Legislativo, consultar os quilombolas. Cabe-lhe, agora, fiscalizar a sua realização, garantindo a lisura desse processo. O governador do Maranhão, Flávio Dino, que contestou o caráter arbitrário da resolução, também tem grande responsabilidade na garantia dos direitos das comunidades.

O governo Bolsonaro chegou ao ponto de precisar ameaçar vidas todo o tempo para sentir-se vivo.

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