Foto: Alan Santos/PR

Por Antonio Carlos Carvalho, advogado e consultor do grupo de conjuntura da Fundação Perseu Abramo, e Warley Alves, ativista e produtor cultural, para Mídia NINJA

O Brasil assistiu com perplexidade o discurso de Jair Bolsonaro em cadeia nacional de rádio e televisão na noite de ontem. Muitas reações foram no sentido de chamar o presidente de louco e inconsequente. Essas reações estão certas, mas ainda falta entender qual é a lógica por trás de tamanha irresponsabilidade. Nem tudo é pura loucura, e nós precisamos entender isso.

Ao longo dos últimos meses, Bolsonaro tomou decisões aparentemente erráticas, teve reações completamente fora dos padrões aceitáveis e ainda assim seguiu fortalecendo sua base de apoio. Por que isso aconteceu?

Existe todo um submundo de informações e teorias que não está evidente aos olhos da maioria da população brasileira. É o mesmo universo do terraplanismo, da noção de que todas as ideias contrárias às do presidente são comunistas e de que há um inimigo comum a ser abatido.

No entanto, Bolsonaro não está solitário nessa caminhada quixotesca. Trump é o seu líder, e por trás dele está uma horda de investidores e grandes empresas que já entenderam que o caminho para dobrar a aposta do neoliberalismo é literalmente sacrificar parte do povo.

A pandemia da COVID-19 é a maior crise que Trump e Bolsonaro enfrentaram, e, como não podia deixar de ser, revela o pensamento dos presidentes de forma cristalina. Basicamente, a paralisação da economia mundial em decorrência da pandemia pode ser uma tragédia política para ambos. Do lado de Trump, os empregos criados pela política econômica americana estariam em risco, em pleno ano eleitoral, e a plataforma republicana é centrada nesses resultados. Já Bolsonaro praticamente ficaria sem nenhuma condição de entregar resultados ao país antes de cumprir sequer metade de seu mandato.

A relação dos dois com a democracia, é, no mínimo, controversa. Oposição é inimiga da pátria. Teoria política é conspiração. E críticas da imprensa são manipulação da opinião pública. Em comum, os dois presidentes costumam adotar discursos de confronto e radicalização, em profunda conexão com interesses econômicos claros. São radicais a serviço de uma doutrina econômica bastante interessante para o “andar de cima”.

No caso da pandemia, tudo começa com um remédio chamado hidroxicloroquina (uma forma da cloroquina). Esse remédio é usado para combater doenças como a malária, lúpus e artrite reumatoide. Há estudos experimentais sobre a administração combinada com a azitromicina e sua eficácia para combater o novo coronavírus. Não se sabe quais são os efeitos da administração dessa combinação, como são os resultados dela a médio prazo, e se ela é efetivamente capaz de interromper o feroz ciclo do vírus. Ainda, a hidroxicloroquina é um medicamento potencialmente tóxico, e sua administração errada pode inclusive levar a óbito, como ocorrido nos EUA na última semana.

Ao longo da última semana, Trump pressionou fortemente a FDA (sigla para Foods and Drugs Administration – em livre tradução: Administração de Alimentos e Drogas, uma espécie de ANVISA americana) para liberar a produção da hidroxicloroquina. A imprensa brasileira, inclusive, noticiou amplamente essa pressão. Trump chegou a afirmar em seu Twitter que a administração combinada da hidroxicloroquina com a azitromicina podem se tornar “um dos maiores trunfos da história da medicina”.

Paralelo a isso, Bolsonaro divulgou vídeo em suas redes sociais com o título “Hospital Albert Einstein e a possível cura dos pacientes com o COVID-19”. Nele, Bolsonaro anuncia que o hospital iniciou um protocolo de pesquisa sobre a eficácia da cloroquina nos pacientes com a doença. Ainda, o presidente afirma que conversou sobre o assunto com o Almirante Antonio Barra, presidente da Anvisa, e com o Ministro da Defesa. Após essas conversas, ficou decidido que o medicamento teria sua produção aumentada no laboratório do exército e que ele não poderia ser vendido a outros países. Vale destacar que Barra esteve com Bolsonaro na fatídica saída do presidente (com suspeita de contágio do novo coronavírus) para cumprimentar manifestantes na porta da residência presidencial. O almirante (alto cargo da marinha brasileira) é o preferido do presidente para substituir o Ministro da Saúde e tem se consolidado como o principal assessor do palácio para as questões sanitárias.

Acontece que todo esse processo se acelerou com a liberação, pela FDA, da produção da hidroxicloroquina nos EUA. Trump comemorou a liberação e anunciou uma parceria com vários grandes fabricantes de remédios, entre eles a Bayer e a Pfizer, para a produção do medicamento. Ato contínuo, o presidente americano passou a defender a flexibilização das medidas de restrição ou isolamento. Enquanto isso, a OMS anunciou que os EUA poderiam ser o próximo epicentro da transmissão do novo coronavírus no mundo.

É aqui que os fatos (por mais questionáveis que sejam, ainda são fatos) se unem à conspiração. Trump e Bolsonaro acreditam que China e OMS compõem uma grande articulação mundial para derrubar a doutrina política que venceu as ultimas eleições presidenciais nos EUA e no Brasil.

Isso justifica até o comportamento de Eduardo Bolsonaro nas redes sociais ao atacar de forma absurda a China e o povo chinês. Portanto, as medidas restritivas não guardariam nenhuma relação com o combate ao vírus, mas sim com a ideia de paralisar a economia e derrubar os governos americano e brasileiro. No mínimo, numa outra tese menos rocambolesca, China, OMS e a Europa estariam com “medo de enfrentar a pandemia de frente” e isso traria péssimos efeitos para a economia mundial.

Assim, o remédio é a salvação e o isolamento ou a restrição passam a ser estratégias políticas para enfraquecer a economia e por consequência, os mandatários. Qualquer órgão ou pessoa que entenda o contrário é inimigo, e assim deve ser tratado. Olavo de Carvalho, conselheiro de Bolsonaro, em vídeo divulgado em 23 de março e posteriormente removido pelo Youtube por ser considerado notícia falsa, chegou a afirmar que a “epidemia simplesmente não existe” e que se trata da “mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana”. Também nesse contexto se encaixa o vídeo publicado pelo dono da rede de restaurantes Madero, que afirmou que o sacrifício de algumas mortes seria menor que o impacto econômico das medidas restritivas.

Dessa forma, a Globo e os meios de comunicação, ao divulgarem a importância das medidas e dos cuidados com a doença são inimigos óbvios do regime bolsonarista. Esse é o exato contexto em que alguns membros do governo (sem a presença do ministro da Saúde) juntamente com Bolsonaro se reuniram para discutir o pronunciamento de ontem. Jair apostou, com o aval de Donald, que o remédio salvará os efeitos da pandemia e que é preciso retomar a atividade econômica imediatamente. Foi nessa oportunidade que o presidente afrontou o sistema Globo e Dráuzio Varela, se valendo de uma fala descontextualizada do famoso médico que tem sido amplamente atacado pelas redes bolsonaristas nas últimas semanas. Bolsonaro mais uma vez aponta os meios de comunicação tradicionais como inimigos do país e segue confiando na produção de conteúdo duvidoso de seus apoiadores para reverberarem essa leitura.

Se ainda resta alguma dúvida de que essa é a tese de Bolsonaro, hoje mesmo, pela manhã, o presidente divulgou em seu Twitter e no seu canal oficial do Youtube, um vídeo contendo o áudio de uma pessoa não identificada, que supostamente estaria acompanhando a coletiva de Trump, atestando a conexão das ações do presidente brasileiro com o presidente americano, tratando de todos os elementos aqui apontados. A lógica que esse texto revela não é sequer escondida. Está a luz do dia para quem quiser entender.

No entanto, assim como há elementos que provam que a terra não é plana, há elementos que provam que a teoria de Trump-Bolsonaro não tem o menor cabimento.

Há especialistas do mundo todo discutindo as enormes fragilidades da eficiência da administração dos remédios combinados. Há um artigo publicado (referência: Gautret et al – International Journal of Antimicrobial Agents 2020) que afirmou que “o tratamento com a hidroxicloroquina é significativamente associado com a redução ou o desaparecimento da carga viral em pacientes com a COVID-19”. No entanto, há severos questionamentos no sentido que não há, no artigo, a menção ao desfecho clínico. Isso significa dizer que o artigo aponta apenas a negativação da carga viral, foi baseado exclusivamente em pesquisas laboratoriais, sem avaliação dos sintomas clínicos, sem menção à diminuição do tempo de internação hospitalar, ou outros efeitos do tratamento. Isso significa dizer que não se sabe quais são os efeitos na continuidade das respostas do corpo após a administração do remédio (lesões teciduais, especialmente nos pulmões, respostas inflamatórias, entre outros). O artigo também é criticado pela não descrição dos efeitos clínicos da associação entre a hidroxicloroquina e a azitromicina, o que significa dizer que não há nenhuma compreensão dos possíveis efeitos colaterais da administração combinada dos dois medicamentos.

Outro artigo, publicado anteriormente (referência Gao J et al Biosci Trends 2020 Feb 19) é ainda mais frágil. Isso porque o título do artigo já trata de uma eficácia aparente da cloroquina. O título do artigo é “Chloroquine phosphate has shown apparent efficacy in treatment of COVID-19”. Não há nenhum dado que fundamente tal eficácia no artigo, o que demonstra uma fragilidade científica absurda.

As críticas apontadas foram corroboradas por um estudo publicado pelo Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital Sírio Libanês no último dia 20 de março. De autoria de Rachel Riera e Rafael Leite Pacheco, a revisão sistemática rápida (uma espécie de análise global dos artigos já publicados sobre um assunto) afirmou que “a eficácia e a segurança da hidroxicloroquina e da cloroquina em pacientes com COVID-19 é incerta e seu uso de rotina para esta situação não pode ser recomendado até que os resultados dos estudos em andamento possam avaliar seus efeitos de modo apropriado”.

A Universidade de Zheijang, da China, afirmou, que em teste com 30 pacientes, 15 receberam a hidroxicloroquina e 15 não. Dos que receberam, 13 apresentaram resultado negativo para o coronavírus após uma semana. E daqueles que não receberam o medicamento, 14 também apresentaram resultado negativo no mesmo período. Não há, novamente, nenhuma constatação da eficácia do medicamento.

Os dois presidentes certamente já estão prontos para responder a essas críticas, que já estão mais do que difundidas no universo dos profissionais de saúde que não apareceram maciçamente na discussão até agora porque certamente estão ocupados tentando salvar a vida das pessoas. As respostas virão sob o argumento (já declarado por Trump, inclusive) de preciosismo científico, que há vidas para serem salvas e que não dá pra esperar uma concordância entre todos os cientistas do mundo. No entanto, não se tratam de evidências comprovadas e nem de uma pequena minoria que aponta a fragilidade dos estudos. Trump e Bolsonaro não possuem nenhum comprometimento com o método científico. Os seus seguidores, que em parte acreditam que a terra é plana obviamente não prestarão atenção ao método científico.

Por fim, cabe um alerta. As afirmações do desastre econômico que se seguirá ao processo de adoção de medidas restritivas atendem a interesses muito nítidos do mercado financeiro, que vive uma crise com raros precedentes da história mundial.

Não será a primeira vez da história que agentes do mercado apresentarão, digamos, uma certa leniência com o risco de morte de parcelas enormes da população em nome da atividade econômica e dos ganhos dos mais ricos.

As ações de Estado para instituição de renda básica, as medidas anticíclicas para sustentar a atividade econômica e as consequentes flexibilizações das regras fiscais tão defendidas pelo neoliberalismo certamente não são de interesse do mercado e podem alterar a disputa econômico-ideológica do mundo. Dessa vez, os estados devem agir para salvar as pessoas e não apenas o sistema financeiro como em 2008. Isso obviamente poderia criar um precedente perigoso que enfraquece ainda a ortodoxia econômica filha do consenso de Washington. Vale lembrar que o Wall Street Journal em 19 de março publicou editorial colocando em oposição a saúde pública e a saúde econômica dos países. A JP Morgan chegou a divulgar um gráfico com a “morte” dos negócios sem a entrada de receita, algo similar aos gráficos de casos confirmados do coronavirus.

Isso significa dizer que a briga que se segue cumprirá o tradicional rito das disputas do capitalismo. E se engana aquele que acha que a batalha a ser travada está perdida por Bolsonaro e Trump. O raciocínio dos presidentes é extremamente funcional àqueles que estão preocupados predominantemente com as perdas econômicas dos mais ricos, e isso certamente não será deixado de lado. As “forças ocultas” já provaram ser bastante eficientes em diversos momentos da história. Recentemente, no Brasil, inclusive. Resta saber se nós, o povo, vamos ou não cair nessa nova cilada.

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