Na última sexta-feira (20), após se recusar a admitir, sucessivas vezes, a gravidade da pandemia do coronavírus, Jair Messias Bolsonaro ousou divagar, pela negação, sobre uma eventual decretação do Estado de Sítio para enfrentar a crise sanitária: “Estado de sítio não está no nosso radar. Em poucas horas você decide uma situação como essa. Mas daí acho que estaríamos avançando, dando uma sinalização de pânico para a população. Nós queremos sinalizar a verdade para a população. Por enquanto, está descartado até estudar essa situação”.

Mesmo se tratando do Bolsonaro, quando um presidente fala de uma hipótese tão grave, como o estado de sítio, se supõe que ele tenha pensado, ou esteja pensando nisso. “Estudar” não é “pensar”, não é mesmo?

Há um detalhe intrigante na declaração presidencial, que é o advérbio temporal “por enquanto”. A admissão de que uma medida de exceção prevista na Constituição para o caso de uma invasão estrangeira, ou comoção nacional equivalente, que prevê até o fechamento dos demais poderes, seja adotada para enfrentar uma epidemia quando o presidente julgar pertinente, é mais do que preocupante. Vinda de uma mente obcecada pelo confronto, então, chega a ser alarmante.

Mas a declaração tem uma outra referência temporal repugnante, na expressão “em poucas horas”. Estado de sítio não é decisão de gabinete. Inexiste a hipótese de invasão estrangeira, ainda menos sob pandemia. A outra hipótese, de comoção nacional, com um presidente desses não há como descartar. Só que ela supõe a vigência anterior do Estado de Defesa, a autorização prévia do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional, além da sua aprovação pela maioria absoluta do Congresso Nacional. “Poucas horas”? O que o Bolsonaro não está querendo dizer com isso?

Vale lembrar que o desprezo do presidente pela epidemia está intimamente ligado ao obstáculo intransponível que ela trouxe para a sua estratégia de fake mídia de reunir claques na porta do Palácio para desqualificar os seus desafetos e, ainda mais, para a sua escalada autogolpista de promover mobilizações de grupelhos da extrema direita para cultuar a sua personalidade doentia e atacar os demais poderes. Bolsonaro não pensou duas vezes em afrontar as recomendações que o seu ministro da Saúde havia acabado de anunciar e foi à praça para abraçar militantes, em plena epidemia.

Bolsonaro não tem condições de unir o Brasil para superar o imenso desafio dessa epidemia. Ele vive – politicamente – de atacar violentamente os demais poderes, os Estados, organismos internacionais e governos estrangeiros, a imprensa, os partidos, os sindicatos e movimentos sociais, minorias e maiorias étnicas e sexuais, organizações da sociedade civil e quaisquer pessoas que discordem das suas posições radicais.

Ao que parece, a pandemia representa, para o Brasil, um tsunami virótico que desabou sobre uma crise política deliberadamente produzida. Bolsonaro perdeu o seu precioso primeiro ano de governo com baboseiras abusivas de todo tipo e as suas supostas realizações, as reformas aprovadas pelo Congresso, nem de longe resultaram em numerosos empregos e investimentos, conforme o governo havia prometido. O PIB até recuou. Bolsonaro já estava mergulhando de cabeça numa aventura autoritária quando foi abatido, em pleno vôo, pela chegada do vírus.

Daí que ninguém duvide que, a despeito das reiteradas desqualificações que faz da epidemia, o presidente e o seu núcleo próximo de aventureiros infectados pretendam reciclar a estratégia golpista valendo-se da gravidade da crise sanitária para reivindicar poderes de exceção, impróprios para combatê-la, mas muito oportunos para quem deseja esmagar adversários.

A eventual proposta de estado de sítio, quando a grande maioria da população vem acolhendo, voluntariamente, inúmeras restrições, é politicamente extravagante. O mínimo que se deve esperar é que o presidente também faça a sua parte, mas Bolsonaro está focado no próprio umbigo, sedento do sangue de outros inimigos. Na verdade, sua cogitação enrustida de estado de sítio é uma ameaça de circo de terror.

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