Por Camila Mantovani e Rachel Daniel

Primeiramente, esse texto não busca representar todas as mulheres evangélicas. Seria pretensão demais da nossa parte já que, como a pluralidade das mulheres na sociedade, dentre as que se reconhecem evangélicas, há também uma pluralidade de formas de se entender mulher e de reconhecer Deus. Diferente dos homens religiosos, que historicamente tentaram impor uma ideia única e inegociável de Deus, as mulheres apresentam um Deus plural, possível e acessível que se revela a partir da experiência corpórea, espiritual e social de cada uma delas.

Escrevemos agora para celebrar a vida das mulheres evangélicas que, a despeito de toda força doutrinadora do patriarcado cristão, têm se redescoberto ao redescobrirem a bíblia com a lente feminista. Mulheres que sustentam suas igrejas e que se cansaram do lugar da submissão, da desonra, da invisibilidade e do silenciamento. Mulheres que já não aceitam a fé que as subjugam, mas que encontraram em Jesus a fé que propõe a elas, libertação de toda opressão e protagonismo no que Deus pode fazer através de nós.

Mulheres que lendo o livro de juízes se depararam com a história de Débora, sacerdotisa, que num tempo quando não existiam reis, foi colocada por Deus como Juíza, máxima autoridade sobre todo o povo de Israel. Não apenas guerreou numa batalha épica que nenhum homem teve coragem de enfrentar, como impediu o povo de ser escravizado sendo um dos nomes mais importantes na história de libertação do povo hebreu – “e a terra teve paz durante quarenta anos” Juízes 5:31B. Mulheres que veem nessa história um Deus que não tem problema nenhum de colocar mulheres em lugares altos e que não pede que elas se submetam aos homens, mas que as exalta e as coloca em posição de liderança e revelação.

As mulheres evangélicas não querem mais ser obedientes porque entenderam que a ideia de obediência da mulher cristã é fruto de uma política de dominação e controle e que nada tem a ver com a proposta libertadora de Jesus.

Queremos celebrar as mulheres que têm olhado para histórias bíblicas como a de Agar, mulher negra, africana, escravizada, violada, grávida e desamparada; e têm compreendido o importante debate a respeito da solidão das mulheres negras e da realidade de mulheres racializadas num país que objetifica e segue tratando os corpos negros como mercadoria, objeto a ser comprado e vendido, a ser usado e eliminado. Mulheres negras evangélicas que diante do ardor das lutas para se manterem vivas e no auge da dor da invisibilização, oram a oração de Agar: “ Tu és Deus que me vê.” GN 16:13. Quando o Estado não enxerga, quando os homens não enxergam, quando a igreja não enxerga, “Tu és o Deus que me [nos] vê!”

Festejamos por cada mulher evangélica que, tendo vivido situações de violência sexual e assédio (inclusive dentro de espaços religiosos) e que apesar de muito feridas, encontraram na história de Susana – contada no livro do profeta Daniel – que, curiosamente, foi retirada da bíblia evangélica, mas que mesmo diante deste boicote, tem sido descoberta por tantas de nós – inspiração divina para romper com o silêncio, pra fazer denúncias e pra acabar com os ciclos de abuso denunciando as violações aos nossos corpos. Susana que foi vítima de uma armação de dois “homens de bem”, pais de família, anciãos conhecedores das leis, que diante da recusa em se deitar com eles, foi condenada à morte mas que sobreviveu porque Deus levantou um profeta que expôs a mentira e conspiração dos homens e reverteu a sua sentença. Quantas de nós não temos feito a mesma oração que ela: “Deus eterno, vós que penetrais os segredos, que conheceis os acontecimentos antes que aconteçam, sabeis que isso é um falso testemunho que levantaram contra mim. Vou morrer, sem nada ter feito do que maldosamente inventaram de mim”. Daniel 13:42-43 (bíblia de Jerusalem).

As mulheres evangélicas não querem mais ser obedientes porque entenderam que a ideia de obediência da mulher cristã é fruto de uma política de dominação e controle e que nada tem a ver com a proposta libertadora de Jesus e nem com as mulheres presentes na narrativa bíblica. É olhando para essas histórias, e tantas outras, que não nos curvamos mais a uma teologia patriarcal que para manter o status quo, a desigualdade e um projeto de poder, reproduz ideias de submissão, obediência e silêncio.

Ao contrário do que está posto nas instituições religiosas e no imaginário do militante, as mulheres evangélicas querem continuar fazendo parte das revoluções do tempo atual como fizeram parte as que vieram antes de nós, no tempo bíblico, nos tempos de luta por direitos civis – Rosa Parks, nos tempos de luta por direito à terra – Margarida Alves, nos tempos antidemocráticos da ditadura e de redemocratização – Benedita da Silva, nos tempos de luta por abolicionismo – Sojourner Truth, e de tantas outras que ainda hoje reivindicam seu lugar de filhas amadas de Deus e agentes ativas da promoção de um reino de paz, justiça e amor.

Nesses dias de marcha pela vida das mulheres, mulheres cristãs, de diversas denominações e confissões, saíram às ruas com seu corpo e sua fé para marcar mais um momento na nossa história. Num tempo de Deus acima de todos, reivindicamos um Deus que está entre as mulheres e se faz presente no corpo de cada uma de nós.

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