Ilustração: Caco Bressane

Lembro-me dos sentimentos que atravessaram minha existência quando resolvi assumir minha transição de gênero. Meu nome era Bianca, lésbica separatista, anarquista e que há alguns anos acumulava certas dores e angústias em relação à heterossexualidade, sobretudo, a masculina e seus comportamentos abusivos e legais perante o resto do mundo. Pairavam muitas dúvidas na minha cabeça, o anúncio público sobre meu novo nome Bernardo e as pessoas me chamando por ele, de alguma forma, deixavam também certos rastros de dor. Eu vivi 25 anos como uma lésbica, nem digo mulher, porque sempre fui tratada como ser aberrante, às mulheres a sociedade dedica outro tratamento, misógino igual, é verdade, mas para lésbicas existem tratamentos requintados a estupros corretivos.

De 2008 a 2015, com muito esforço, consegui encontrar lugar identitário no movimento anarquista, especialmente entre minhas companheiras feministas, a maioria delas lésbicas, mas também, heterossexuais. Se hoje sou o que sou, agradeço todas aquelas mulheres que me acompanharam e, algumas delas que seguem na minha rede de apoio e eu na delas. O que quero dizer com tudo isso é que foi muito difícil desejar profundamente assumir uma nova identidade, mas ao mesmo tempo, ter que abrir mão de uma identidade tão preciosa e de resistência. Naquela época, e na minha ignorância binária, só poderia ser lésbica ou homem.

Também foi muito difícil engolir a heterossexualidade compulsória a que submetem as pessoas trans. Entendo que façamos uma distinção pedagógica entre identidade de gênero e sexualidade, mas precisamos começar a reconhecer que nossos corpos e desejos sexuais enquanto trans, interseccionam essas duas categorias de análise e produzem efeitos que não sabemos exatamente nomear. Em poucas palavras, não sou uma pessoa heterossexual, embora me reconheça como transmasculino e sinta desejo, majoritariamente, por outras mulheres. O que sou é ainda inominável ou simplesmente, trans com tendências mais masculinas.

Foi difícil demais construir uma nova identidade, porque somos seres essencialmente formados pela cultura e o Bernardo que nascia, não tinha rosto no mundo, não tinha significado e história. Passei muito tempo secretamente alimentando um arrependimento e ao mesmo tempo desejando me apresentar ao mundo com um terno, de barba e uma presença masculina padrão.

Meus primeiros contatos com outros homens trans e transmasculinos e não binários foi também bastante doloroso, digo isso porque minha passagem pelo movimento feminista me ensinou um esforço genuíno de não ódio ao corpo, embora não conseguisse praticar isso todos os dias, avancei muito em relação a menstruação, seios e vagina. E sim, é necessário reconhecermos que existe um ódio estruturante e milenar assolando a todes nós numa ideia de que o feminino e a feminilidade são menores, mais frágeis, mais passíveis a quaisquer tipos de violação socialmente legitimadas. Me isolei desse movimento trans, num primeiro momento, porque não odiar meu corpo, meus seios, vagina e menstruação era muito precioso à minha saúde mental e, além disso, me lembrava da minha primeira promessa quando decidi ser Bernardo: o objetivo (mesmo que inicial, porque mais tarde descobri que as relações humanas, muitas vezes, são pautadas também pela dor) era assumir a transição com vistas na defesa da minha alegria organizando uma revolução pessoal.

Quem ganha com a gente odiando nosso próprio corpo? Quem instalou em nossos gostos e desejos tamanha repulsa?

Quando penso nesse objetivo embrionário de Bianca e Bernardo, me lembro o desserviço social que foi saber que existia uma novela na TV Globo sendo construída em horário nobre onde a atriz interpretando um homem transexual batia em seu próprio corpo por não reconhecê-lo como seu. Aqui me dirijo a meus pares: quem ganha com a gente odiando nosso próprio corpo? Quem instalou em nossos gostos e desejos tamanha repulsa? Certamente o começo dessa resposta esteja nessa violência epistemológica que instaura paulatinamente a cisgeneridade embutindo normas heteropatriarcais coloniais. E não nos enganemos, não são somente pessoas trans que sofrem com esse regime, as jaulas dessas subjetividades humanas esmagam tudo que poderíamos vir a ser, múltiplos, feito manadas. A parte poética e revolucionária é saber e reconhecer que onde há poder, haverá resistência.

Aos poucos, fui encarando o mundo com o que tinha para oferecer e verdade seja dita, era a ideia de uma masculinidade bastante problemática e que passei, em alguma medida, a reproduzir. Por mais esforçado que fosse não posso deixar de assumir que fui semeado em terreno tóxico e abusivo. Fomos, né? Por mais que nos esforcemos acabamos por reproduzir certos comportamentos em nossas identidades e relações e, custa caro voltar, refazer, voltar a errar, acertar, errar de novo, não se odiar, não se julgar, não julgar as outras pessoas, deixar o maniqueísmo para trás e todas aquelas velhas indicações clichês que, vez ou outra, admitimos funcionar para nós.

Há 1 ano atrás e já com uma transição avançada deixei de passar certas violências recorrentes enquanto lésbica e a me movimentar mais livremente conforme a leitura do “homem” se faz mais presente. Aqui é importante destacar que o privilégio de homens trans e transmasculinos numa sociedade patriarcal heteronormativa em muitas situações se prevalece, mas ele é volátil e se algum traço de feminilidade ou comportamento incomum aparecer nessa leitura voltamos a ocupar o lugar de ameaçado. Há outro destaque importante em relação a intersecções de raça, classe social, diversidade funcional, pressões estéticas, etc. Fato é que, como Paul B Preciado anuncia, transmasculinos e homens trans saímos de uma jaula imposta (socialmente, juridicamente e legalmente, lidos como mulheres) e entramos, agora voluntariamente em outra jaula (do masculino e ao que tudo nele é atribuído) e, ás vezes, ambas as jaulas, mais as masculinas que as femininas, têm efeitos danosos em nossas relações e relacionamentos.

Há 1 ano também e nessa comemoração do mês da visibilidade trans, quero dizer que eu, enquanto transmasculino e ou homem trans, reconheço e dou propulsão à identidade da lésbica que fui e a qual cedeu espaço para ser chamada de Bernardo e tratada no masculino. O que hoje anseio é por um momento coletivo e de mudança social em que Bianca e Bernardo possam socialmente coexistir dentro do mesmo corpo e construir novos masculinos ou novos femininos, ou nenhuma das duas coisas, ou as duas coisas juntas sem que nenhuma dessas minhas identidades precisem se esconder, serem violadas ou constrangidas. O constrangimento precisa ser direcionado para quem nos viola e não o contrário. Quando perguntarem sobre nome e identidade anterior que minha resposta seja ferramenta de mudança epistêmica e não de divisão entre nós e os cisgêneros, porque no final, estamos todes meio que enjaulades.

Essa longa narrativa me parece necessária aqui porque a encontro nesse momento pedagógico da minha existência e que se estabelece um pouco na contramão da ideia da transição de identidade de gênero linear progressista. Enquanto pessoa trans, sinto muitas vezes no que leio e ouço que nós, politicamente, estamos buscando ser compreendidos na lógica cisgênera heteropatriarcal e me parece que nossos esforços deveriam ser justamente nos comportarmos como cavalos de troia, nos apresentando como presentes sociais que saem dos lugares aberrantes de gênero e se assimilam as normas, mas que ao nos “assimilarmos” a elas, tenhamos a intenção de destruí-las. Aqui falo mais especificamente com outros homens trans e transmasculinos que existe uma potência em usarmos nossa passabilidade para destruir tudo o que os homens cisgêneros conhecem como masculinidade, porque embora eu reconheça o esforço de suas discussões sobre como são tóxicos, não me parece estar adiantando muito seguir sendo tóxicos, mas com vestes de vítimas de uma sociedade machista que os impõe assumirem seus legados privilégios.

O que finalmente digo é que também posso assumir ter escrito bobagens do meu lugar de fala, mas também que acredito que meus 25 anos de existência como Bianca ensinaram Bernardo a não se sentir, na maior parte do tempo, intimidado, envergonhado ou encabulado por ser quem se é. Acredito, inclusive, que são essas diferenças explícitas e nomináveis ao mundo que nos levará a despatriarcalização, desheterossexualização e a descolonização. Paul B. Preciado saiba que aqui das terras latinas, você tem aliadus!

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