Cena do Filme Paradies Glaube / Ulrich Seidl

Existe uma lógica legalista dentro das instituições religiosas evangélicas que definem o que pode e o que não pode. Nessa lógica se você faz o que não pode, você pecou e é punido por isso – pela igreja e por Deus. O ideal então é que todos permaneçam fazendo aquilo que pode e se blindem do que não pode – para não cair na tentação.

Essa relação de pode/não pode isenta a instituição – e quem a conduz – de aprender e ensinar com a comunidade. Se já está dado o que é certo e o que é errado, se já existe uma hierarquia de quem julga e pune e de quem é julgado e é punido, não há espaço para o questionamento e por consequência para o aprendizado. Até porque somos levadas a pensar que questionar a instituição é necessariamente questionar a Deus.

Me lembrei que li uma vez de Bell Hooks:

“Olhando pra trás, vejo que nos últimos vinte anos conheci muita gente que se diz comprometida com a liberdade e a justiça pra todos; mas em seu modo de vida, os valores e os hábitos de ser que essa gente institucionaliza no dia a dia, em rituais públicos e privados, ajudam a manter a cultura de dominação, ajudam a criar um mundo sem liberdade.”

Penso que essas igrejas são esses espaços: instituições que pregam a mensagem de liberdade de Jesus, mas escravizam seus fiéis a um estilo de vida moldado pelo capitalismo, racismo e patriarcado. Mais do que isso, são espaços que elencaram pecados maiores e menores para que pudessem fazer a manutenção dos seus poderes. Funciona mais ou menos assim: os líderes – supostos representantes de Deus – criam mecanismos para limitar o acesso ao conhecimento dos fiéis usando da fé (existem coisas que não precisamos entender, só obedecer).

Nesse mundo de pode/não pode a sexualidade, e mais especificamente o ato do sexo, está no topo da lista de doutrinação cristão, das coisas que precisamos só obedecer. Isso porque – como muitas outras antes de mim já pontuaram – controlar a sexualidade é controlar os corpos e, controlar corpos é controlar o acesso ao conhecimento e, em consequência é limitar as liberdades. Estratégia de poder.

Somadas a isso, a lógica de culpa e medo colaboram para a construção da ideia de que o sexo só será bom e sagrado quando for autorizado pela comunidade religiosa que o reprime. Antes disso, desejar, sentir, conhecer e transar ficam no campo do pecado.

Muito se fala sobre a doutrina, moral e a proibição do sexo antes do casamento, mas nada se fala sobre educação sexual. Vejam, se o sexo é algo tão sagrado e importante, por que não ensinamos nossos jovens sobre ele? O que é o sexo, como é nosso corpo, onde estão as relações sexuais na bíblia, o que é o prazer, o que é violência e o que é saudável, o que é justiça reprodutiva, como se proteger?… NADA! Não existe uma construção de fato libertadora sobre o sexo, nem mesmo nas igrejas mais esclarecidas.

Nesse ecossistema de silenciamentos, doutrinação e fé acabamos deixando a mercê de gente aproveitadora nossa juventude. Com um discurso moralista, muitos grupos se levantam para articular jovens em torno da pauta da abstinência sexual como uma elevação espiritual ou superioridade social. “Eu escolhi esperar”, por exemplo, há anos mobiliza milhares de líderes e adolescentes para fazerem uma aliança de pureza com Deus. Uma máquina extremamente cruel de violência, opressão e obediência de uma ideia de um Deus punitivista que só nos ama se vivermos nas condições que esses homens no apresentaram, porém, enfeitada de amor, cuidado e alegria plena.

Assim crescem, no poder e no capital, dizendo que é obra e vontade de Deus e mais do que isso, geram relações doentias do fiel com o ato sexual. As pesquisas mais recentes sobre vaginismo mostram que, na maioria das vezes, a causa do problema é psicológica e geralmente envolve crenças religiosas que demonizam o sexo e cultuam a virgindade como algo sagrado. Para além disso, é só ir a alguma igreja por aí que você vai saber que pornografia, estupro marital e problemas em relações sexuais, estão no top 5 de problemas dos fiéis nas comunidades – inclusive entre os casais casados.

Fazendo um recorte de gênero a situação fica mais violenta. A igreja foi a responsável por associar o pecado de Eva ao sexo – a sedução do homem ao pecado – e alegar que todas nós temos uma natureza propensa ao pecado. É fácil encontrar igrejas que orientam as mulheres a adotarem posturas subservientes em relação a sua vida sexual, alegando santidade, conexão com o divino e combate a essa natureza pecaminosa.

É a partir desse lugar que a ministra Damares constrói seu projeto de abstinência sexual para adolescentes. Reproduzindo uma lógica religiosa de controle de corpos, esse governo não pretende desenvolver políticas de educação sexual nas escolas – inclusive ele as elimina acusando o pouco que temos avançado como doutrinação, ideologia de gênero e comunismo – mas uma política de controle que impõe medo e culpa.

Damares e seu projeto camuflado de saúde pública – evitar que meninas engravidem precocemente – nada mais é do que a reprodução do que já vivemos dentro das igrejas: imponha como lei, reprima, não ensine.

Me lembro bem que, em 2018, o discurso bolsonarista que mais emplacava nas comunidades de fé era justamente os que envolviam os absurdos sobre sexualidade – mamadeira de piroca, kit gay, aula de masturbação nas escolas… A incapacidade proposital das igrejas em falar sobre o sexo e a demonização da sexualidade foi campo fértil para o fortalecimento da imagem do governo que temos hoje. Mais do que isso, percebo que após o fenômeno das eleições, Damares é o elo que permanece entre o governo e o evangelicalismo brasileiro e por isso é tão essencial para a manutenção do poder – a permanência depende também da satisfação de uma grande massa evangélica do país – e por isso ações como essas são valorosas e tendem a “prosperar”.

Damares e seu projeto camuflado de saúde pública – evitar que meninas engravidem precocemente – nada mais é do que a reprodução do que já vivemos dentro das igrejas: imponha como lei, reprima, não ensine (de preferência nem toque no assunto) e jogue os problemas provenientes disso para debaixo do tapete.

Se há pouca ou nenhuma política pública sobre saúde e educação sexual para meninas e meninos no nosso país e se há problemas provenientes disso na vida do nosso povo, podemos ter a certeza que com a ministra Damares e seu clã religioso eles irão aumentar.

Uma coisa que a igreja e a política entenderam bem, e que o grupo que ocupa o poder controla com maestria, é que práticas educativas saudáveis libertam e, pessoas libertas não se deixam submeter a jugos de escravidão. Por isso, eles acabam com todas as possibilidades de educação e as demonizam e é por isso que Damares não investirá em educação sexual e sim em DOUTRINAÇÃO.

Uma jovem e um jovem empoderados sexualmente, não se deixariam levar por papinho de pastor moralista que quer nos colocar nas caixinhas do pode/não pode. Uma jovem informada conhece seu corpo, entende suas sensações e sente seus desejos. um jovem informado não objetifica o sexo e não o procura de forma doentia na pornografia. E é justamente esse lugar que eles temem. Quem encontrou com a liberdade do Cristo, quem encontrou com a liberdade do conhecimento, quem encontrou com a liberdade da culpa, é incontrolável e pessoas incontroláveis são ingovernáveis e não servem como massa de manobra para os poderosos e nem para os seus projetos de poder – as igrejas.

Sou uma jovem evangélica, que não “escolheu esperar” e que todos os dias luta contra a culpa de sentir os prazeres do corpo – já que a ideia de pecado fica tão enraizada em nós – e não posso conceber ideias como a da ministra Damares. Não sabendo que muitas mulheres como eu sofrem com as consequências da opressão sexual, mesmo depois de esclarecidas.

Nossa tarefa em tempos sombrios, é espalhar a palavra de Nancy Cardoso – teóloga feminista – que uma vez escreveu: “Para quem lê a bíblia com todo o corpo é quase impossível ir dos Salmos à profecia sem ouvir os gemidos agradáveis e sentir os cheiros e suor que se espalham nas poucas páginas de Cânticos dos Cânticos”, ou da teóloga e cientista da religião Angélica Tostes quando diz: “A dançarina e dançarino que com o seu corpo experimenta a vida e dá tudo de si na dança da existência é condenado por não disciplinar seu corpo à “experiência defunta” do cotidiano cinza, a não repetir os mesmos movimentos de 500 anos atrás”.  Ou de tantas outras que através do corpo, do sexo, do prazer e do conhecimento nos apresentam uma nova forma de conhecer a Deus.

Talvez daqui alguns anos, numa sociedade mais doente e mais cansada, marcada pelos retrocessos do nosso tempo, teremos que perguntar aos nossos jovens: “Você nunca transou por escolha ou por medo? “ e talvez, reparando os danos que vivemos, daremos passos largos em direção a uma educação sexual e políticas livres do controle religioso e patriarcal – essa é minha oração.

 

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