Há alguns dias atrás postei uma foto de Preta Ferreira se encontrando Angela Davis. A legenda era pouco criativa “Angela Davis e @preferreira 🖤”. Era tudo que eu conseguia elaborar sobre essas duas mulheres gigantes na mesma sala. Likes e comentários depois, alguns amigos me chamam no privado para celebrar o dia que conheci Angela Davis. Não entendi – infelizmente eu estava no Rio nas datas que ela estava em São Paulo e vim pra São Paulo quando ela foi pro Rio. Ou seja, nunca estive na presença de Angela Davis. Ou Preta Ferreira.

O fato era que estes amigos e amigas brancas me confundiram com a Preta. Viram a foto de duas mulheres negras, uma que tinha que ser Angela e outra que só podia ser eu. Quando respondia dizendo que não, que não era eu na foto, a maior parte pediu desculpa e se calou no constrangimento. Mas um deles tentou justificar que eu era MUITO parecida com Preta. Me mostrou fotos no instagram dela para comprovar. Foi um debate tão exaustivo quanto dolorido. Eu e Preta, além de amigos, não temos muita coisa em comum. Viemos de território diferentes, temos trajetórias diferentes e FENÓTIPOS diferentes. Não temos o mesmo sotaque, o mesmo nariz, o mesmo cabelo, nem o mesmo o tanto de melanina. Compartilhado mesmo é o racismo que acha que somos todas iguais.

https://www.instagram.com/p/B35m1WGJ8sS/

Tenho postado e falado sobre a Preta mesmo sem a ter conhecido pessoalmente não só porque acredito que seja minha responsabilidade como mulher preta que vive comunicação (@midianinja!), mas também porque não conseguia imaginar a solidão que era estar presa. Estar privada de liberdade por lutar por direitos básicos. Não fazia sentido antes de conhecê-la e foi pior depois de estar junto a ela.

Ontem, 23 de outubro de 2019, amigos levaram a mim e Babiy Querino, dançarina e outra mulher vitima do sistema carcerário, para comer caldinho de feijão e conhecer Dona Carmem e Preta Ferreira. Ali estava instaurado o encontro de 3 pretas que nunca haviam se visto.

Presa por um ano e 8 meses, em liberdade há um mês, Babiy tinha recebido há algumas horas a notícias sobre sua audiência, que acontece na próxima semana. Entre uma garfada e outra, as duas contaram histórias dos dias dentro da cela, das visitas, dos remédios que tinham acesso, das companheiras ali dentro, da diferença entre elas e as presas brancas com dinheiro.

O Brasil é o 4º país que mais prende mulheres no mundo.

Segundo o Infopen, 62% são negras, 74% mães e 45% ainda estão sem julgamento. A população carcerária aumentou em 656% desde o começo dos anos 2000. Em junho do ano passado eram 42.355 mulheres. Metade das das presas tem 29 anos – que futuro elas terão depois de sair da cadeia? Preta falava sobre como ela esteve presa por três meses – ou seja, sem trabalhar por três meses – com dívidas de três meses. Enquanto ela estava presa, quem pagava suas contas?

O fato é que Preta conheceu Angela Davis, outra mulher que foi encarcerada. Angela enfrentou um julgamento de 18 meses e foi inocentada após grande clamor das ruas. Protestos aconteciam diariamente, John Lennon, Yoko Ono e Rolling Stones gravaram músicas pedindo sua liberdade. Era um encontro de milênios e para nós honra termos estas duas vivendo na mesma geração.ação.

Mas eu confesso que também havia para mim, que olhei de fora, um fundo de tristeza neste momento. Por quantas vezes Angela conseguiria encontrar novamente uma mulher preta criminalizada e ganhando notoriedade depois de ser presa? Isto é, por quantas vezes vamos fazer Angela encontrar a si mesma? Por outro lado, quantas vezes Preta vai se deparar com a verdade de que, aos 75 anos, ainda vai precisar lutar e contar esta história? Por quantas vezes Preta vai precisar realizar que isto não vai ter fim enquanto ela estiver viva?

Para Babiy também não devia ser fácil – ela foi presa em 15 de janeiro de 2018 ao ser reconhecida pelo CABELO, acusada por 2 roubos. Por um dos dois, ela foi condenada por mais de 5 anos – haviam provas bastante consistentes de que ela estava em outra cidade no dia do crime e isso foi absolutamente desconsiderado. Prenderam uma jovem preta sem provas. A palavra de um branco é tudo que precisam para nos tirar de circulação.

Foto: Lua Leça

A noite toda foi uma experiência de completa humildade e reencontro com outras histórias – eu nunca fui presa e na minha família os baculejos foram todos dedicados aos homens. E meus primos em celas eu nunca visitei. Da polícia eu “só” recebi ofensas e assédio sexual. Então ouvir aquelas mulheres que passaram por tudo aquilo e estavam de pé, dividindo comida e sorrisos também foi um momento de lembrar qual era meu lugar, de onde eu vinha.

Enquanto isso, há mais de 450 quilômetros dali, no Cine Odeon, Angela Davis estava dando sua conferência no Rio de Janeiro. Remotamente, havia acompanhado outros três momentos de fala de Davis e tinha ouvido o que todo brasileiro e sua síndrome de vira lata precisam: parem de se espelhar nas histórias norte-americanas. Se aprende muito mais com Lélia Gonzalez do que com Angela Davis. Então pareceu de bom tom ficar ali na cozinha para ouvir Preta e Babiy enquanto a norte-americana falava e era retransmitida num telão na Cinelândia.

Em dado momento duas crianças entraram correndo pela cozinha. Uma, duas, três vezes e me tiraram para brincar de adoleta. Além de me sentir extremamente datada, porque eu não sei mais nenhuma música dessa brincadeira hoje dia (!!!!) as crianças me lembraram muito minha irmã de sete anos, que ainda não consegui ver neste 2019. Anotei mentalmente as musiquinhas porque quero ganhar dela quando voltar pra casa e não ter que pensar se ela vai ser presa também.

Foto: Lua Leça

Por fim, Lua Leça, que me levou até este encontro lembrou de outro caso – ela me presenteou um livro há alguns meses atrás, “O Defeito de Cor”. Quando foi pra levar pra Ana Maria Gonçalves assinar, ela também levou uma cópia que daria para Preta. Na confusão, na fila, no evento, Ana acabou dedicando o que iria pra mim para “Dríade Ferreira”. Meu nome, sobrenome dela. Rimos histericamente disso, e eu só consegui pensar que bem, então se é isso, tudo bem.

Se a minha vida, que só é o que é porque sou amparada por uma comunidade, por uma vivência coletiva, se esta vida for ser comparada daqui pra frente com Preta Ferreira, então é isso. É uma grande honra dividir e aliviar um pouco da sua dor e levar suas palavras para frente.

Por isso, como Preta Ferreira diz: Liberdade para todas as pretas.

Foto: Mídia NINJA

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