Fotos: Marcelo Costa Braga

Por Eduardo Sá

Tudo começou sem nenhuma pretensão num barzinho da zona sul carioca. O grupo composto atualmente por oito mulheres não é o pioneiro nessa perspectiva feminina, mas ganhou projeção rapidamente. No dia 16 de agosto completa apenas dois anos, mas por onde passa arrasta um grande público. Já tocaram em diversos bairros da cidade, casas de shows famosas, fizeram parcerias com artistas consagradas, e até realizaram uma turnê internacional por Portugal, na Europa.

Mas a essência continua. Apesar de enfrentarem muitas dificuldades, ainda têm preferência por tocar na rua. Nela será a comemoração dos dois anos do grupo na próxima sexta-feira (16/08), veja aqui no link do evento. Nesta entrevista à Ninja, elas contam como nasceu o projeto, a dificuldade e importância de um coletivo feminino ocupar espaços no samba, e falam sobre o machismo na sociedade e a conjuntura política atual. Conversamos com seis integrantes antes de um ensaio realizado no hotel Selina, na Lapa: Cecília Cruz, Silvia Duffrayer, Mariana Solis, Júlia Ribeiro, Bárbara Fernandes e Angélica Marino.

Como se deu o surgimento do grupo, vocês tocavam separadas antes?

Mariana: Tínhamos um núcleo de quatro pessoas que fazia parte de outras rodas de samba, onde somos mulheres minoria. A Gisele já tocava com outras mulheres, mas entrou depois na roda. Poucas já tinham tocado juntas, outras já tinha algum contato por amigos, então começamos a nos falar para montar uma roda de samba só de mulheres. A ideia era se reunir num bar e tocar sem muita pretensão com um grupo só feminino. A gente começou a se reunir ali por Botafogo, Humaitá e na minha casa.

Cecília: A gente estava praticando, tirando músicas juntas, e o objetivo era um dia tocar juntas. Ainda não rolava nem de passar chapéu, era para estudarmos juntas e nos fortalecermos. Mas a ideia do grupo vem depois.

Mariana: Aí rolou da Cecília e a Silvia se conhecerem num trabalho que fizeram juntas. A Silvia queria comemorar seu aniversário e a primeira roda do Samba que elas querem foi no bar Dois Irmãos, na Pedro Américo, no Catete, nessa festa. Era uma roda despretensiosa e ela já batizou o grupo no evento do Facebook. Foi tão maneiro que nos convidaram para tocar no festival O Passeio é público, a Silvia montou um grupo de Whatsapp e fechamos o trabalho. A Julia estava viajando, mas chegou e fechamos o grupo para a nossa roda de rua mensal. Já fomos nove integrantes e agora somos oito.

Embora tenha alguns grupos femininos há mais tempo na estrada, vocês ganharam uma projeção grande muito rapidamente. Por quê?

Silvia: O momento foi muito propício, em que as mulheres estão se refazendo e retomando seus lugares socialmente. Isto é um ponto positivo para o grupo crescer da forma que cresceu, mas não é só isso também. Temos uma característica que deu certo, a união em meio às diferenças, a gente enriqueceu muito no processo.

Vocês são todas da zona sul?

Silvia: Eu e a Gisele somos de Bangu, zona oeste, tem gente de Niterói e da zona sul. A diferença enriquece muita coisa e potencializa uma junção. Somos diferentes em tudo, não só fisicamente, como na educação, etc. Mas acho que é muito por esse momento e ser um grupo de mulheres. Tem o Moça Prosa, o da Ana Costa…

Silvia: Foi bom também, porque acho que inspiramos muitas mulheres. Em Vitória (ES) umas meninas se sentiram encorajadas e formaram um grupo, em Buenos Aires e muitos outros lugares se sentiram representadas por ver um coletivo de mulheres. Vamos pesquisando e tentando entender como era o movimento, e realmente era mínimo em termos de projeção: um grupo feminino no meio de um milhão de outros.

Foto: Marcelo Costa Braga

Essa questão da composição própria e com releitura de música famosa com o olhar feminino também ajudou neste crescimento?

Silvia: A versão de mulheres que eu fiz com a Doralyce o samba abraçou. Virou um hino da mulherada cantando. Por enquanto só temos essa versão, mas pretendemos gravar mais autorais. Tem que tomar cuidado, porque o samba é muito machista. Nasceu num ambiente machista e as histórias, os sambas, quando você vê está falando coisas que não queremos mais falar.

Júlia: Também tocamos outras canções autorais, estamos em processo de testar essas músicas de amigas e queremos levar para frente. E temos algumas nossas mesmo, mas ainda não entraram no repertório.

Silvia: Estão cobrando muito no Spotify, isso é uma parada que estimula. Chegamos num boom em pouquíssimo tempo e agora estamos mais maduras para começar a gravar, se entender nesse movimento todo com um milhão de shows e tendo ido a Portugal.

Júlia: Em cinco meses a gente já ouvia essa cobrança, esse movimento se deu também de fora para dentro. A gente só queria fazer uma roda por mês lá no Catete e tocar juntas, estudar, evoluir enquanto artistas, musicistas mulheres, depois a gente começou a ir para todos os lugares do Rio e outras cidades.

Vocês já têm uma produtora que assuma toda essa burocracia, logística, divulgação?

Julia: Temos uma mini equipe que é composta por algumas de nós, e por duas mulheres, a Bárbara Louise e a Fernanda David, que nos agencia e fecha os eventos e negociações. Mas nem todas do grupo ainda vivem de música, fazemos outras atividades, algumas estudam e dão aula de música. Tem engenheira, psicóloga, inclusive a Mari é a designer e fez a logo e todas as artes, além de a própria Silvia já ter sido produtora.

Silvia: É bizarro ainda não termos ido a São Paulo, por exemplo. Agora vai ser mais um investimento, como foi Lisboa, para a gente fechar shows e ir. Não falta convite, só que a galera não tem como bancar oito passagens, hospedagens, etc. É difícil também para o contratante, então temos que começar a pensar projetos e porque não dá pra ficar só aqui.

Voltando ao empoderamento, na história do samba as mulheres ficavam muito na cozinha, na dança, depois tivemos mestras na interpretação, mas algumas funções como a composição estão sendo ocupadas só agora. Como vocês veem isso?

Silvia: É um novo cenário se formando, difícil até falar enquanto está acontecendo e vivendo o processo. É muito maravilhoso ver as mulheres se colocando e a gente também se entendendo como mulher. Tenho aprendido muito desde que o grupo nasceu e a responsabilidade de falar para outras pessoas e mulheres. É muito bom ver esse movimento tão fortalecido e nós muito mais unidas. Fomos criadas para competir, quem é mais bonita ou tá isso ou aquilo, e agora estamos juntas.

Isso se reflete nas mídias sociais, no sentido de divulgar outros coletivos e músicas enquanto movimento?

Júlia: Temos muitas participações nas rodas de outras artistas mulheres. Todo evento que tem uma visibilidade maneira convidamos alguém para fazer participação e que a gente acha que será bom ter essa troca.

Mari: Já divulgamos projetos dos outros, fazemos eventos juntos, damos destaques a datas que queremos frisar, etc. A primeira foi com a Glória Bonfim, ela estava querendo financiar seu disco e foi na nossa roda e nem cobrou nada, foi maravilhosa. Tia Surica, Nilze, dentre outras.

Foto: Marcelo Costa Braga

E o mercado, como se dá o diálogo com os bares, casas de samba, shows?

Silvia: A nossa roda de rua geralmente eles bancam o som e a gente roda o chapéu. É diferente de um bar como o Bar do Zeca, que é mais estruturado e temos um cachê e fecham com a nossa produtora. Na rua já é mais resistência.

Júlia: Fazemos porque queremos muito, é muito difícil. Falamos muito sobre tentar sempre usar a rua, mas recebemos muitas propostas e precisamos trabalhar. A roda de rua é sempre uma diferença muito grande.

Silvia: O samba querendo ou não é muito democrático, é outra energia fazer roda na rua. Não temos feito por falta de oportunidades e impedimentos, pois não estamos conseguindo. A Banca do André, por exemplo, que é nosso parceiro, no Centro do Rio, não está conseguindo. Porque a gente leva muita gente e isso acaba sendo um impedimento para quem está contratando: tem que ter segurança, banheiro, limpeza, etc. No Bar Dois Irmãos tivemos que sair porque a vizinhança não conseguia mais subir a rua. Passa a ser uma falta de respeito também.

Silvia: Quando a gente faz na rua fica muito cheio, é muito incrível e muito lindo, mas é o evento que ficamos mais tensas. A gente assume um monte de responsas, é tudo botando a cara, e isso é também uma questão né porque se der alguma merda é o Samba que elas querem.

Vocês trazem junto ao projeto uma narrativa política também?

Silvia: Falamos sobre racismo, violência, preconceito, etc, e os incomodados têm que ouvir. Tem assunto que a galera fala: ai que saco elas vão falar de novo, mas infelizmente temos que falar em todo show. Temos um retorno grande sobre o que falamos também.

Mari: Sim, nas eleições foi muito. Um dia antes no Arco do Telles todo mundo gritou Fora Bolsonaro, e no ato quando a Marielle foi assassinada a gente tocou.

Cecília: As nossas músicas e falas são pelo que a gente acredita, o papel da mulher, dentre muitos outros temas.

Bárbara: Ser um grupo só de mulheres já é representativo, e os termos são igualdade salarial, abertura no mercado de trabalho às mulheres que tocam, que são instrumentistas. Nos posicionamos com todo cuidado para não parecer uma coisa comercial. É muito tênue. Temos cuidado quando o convite é de algum comitê de partido, porque mesmo que sejamos afinadas com esse ou aquele discurso não fazemos propaganda para nenhum. O Samba que elas querem, apesar do voto de cada uma, preza pela democracia.

Silvia: Temos mais é que fazer essa galera nos ouvir, precisamos inclusive aprender a nos comunicar principalmente neste momento que está todo mundo muito estressado. A política fez um monte de gente deixar de se falar, tenho esperança que a gente vá conseguir retomar isso.

Qual a avaliação de vocês sobre a atual conjuntura?

Bárbara: Depois que o Bolsonaro ganhou, como diria Chico, “a nossa gente anda falando de lado e olhando pro chão”. E esse estado muitas vezes faz com que as pessoas percam um pouco a fé na democracia. Até que ponto o espetáculo (que a política se tornou, com jornais, revistas, e televisão alardeando dia após dia uma notícia desesperadora atrás da outra) é bom para saúde? Mas até que ponto deveríamos largar de mão a realidade?

Enquanto isso parte da sociedade consome as chamadas de facebook e as fake news, e a outra parece estar atada, bloqueada, tão melancólica e desgastada, que só o ato de apurar o que está realmente acontecendo é doloroso. Fico me perguntando se essa força que a arte tem, e que o samba principalmente causa em forma de poesia, pode mudar a consciência das pessoas que nos acompanham. Não podemos estar em festa o tempo todo sabendo que grande parte do nosso país adoece, passa fome, sofre violência, etc. Portanto, o que somos também se reflete em forma de discurso, e o samba tem seu papel social de aliviar, denunciar, acalentar e inspirar paixão e humanidade nas pessoas. Ou seja, esperança e alegria precisam andar juntas, e resistir.

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