Foto: Emergentes

Por Nancy González

Durante o ano passado tivemos na Argentina a emblemática discussão sobre a legalização do aborto seguro e gratuito. Ao longo dos meses, a agenda pública e parlamentar girou em torno de uma problemática que as mulheres carregam em seus corpos por centenas de anos e que pela primeira vez foi tratada sem rodeios no Congresso Nacional. O leque de argumentos foi amplo, mas no geral apareceram três eixos: a questão jurídica, a questão da saúde pública e a questão moral. Já se passou um ano e, apesar do projeto ter sido recusado, ficam algumas reflexões que proponho abordar a partir de cada eixo.

Comecemos pelo discurso jurídico, o primeiro bastião que põe obstáculos na legalização da interrupção legal da gravidez. Somos as e os parlamentares que nos encarregamos de nutrir nosso corpo normativo com leis que tentem refletir e, ao mesmo tempo, ordenar nossa sociedade. Quando uma questão chega ao parlamento, o que vem a se tornar lei é algo que já acontece com nossa população. A lei vem para consagrar essa institucionalização. A questão jurídica é regra, mas não é imposta.

Há mais de 100 anos nosso código penal estabeleceu uma base em torno do aborto, no entanto, só conseguimos abordar o tema em 2018 e, mesmo assim, não conseguimos concluir uma resposta. Insisto portanto, o debate legal deve levar em conta o papel que ocupa e lugar de fala de quem irá falar. É uma disputa que devemos dar, retomar e impulsionar tenazmente a partir da política. Deve ser nosso compromisso insistir para que o Estado Argentino tome uma posição e se responsabilize por aquilo que conhece, mas segue escolhendo ignorar.

As mulheres que se expõem a uma precariedade de uma morte clandestina têm que escolher entre viver ou se submeter à possibilidade de serem julgadas e estigmatizadas socialmente. Então morrem, morrem nas piores condições: na solidão de um Estado que as abandonou.

Nosso país em matéria de saúde pública é modelo em toda a região latino-americana. Esse foi um dos argumentos mais irrefutáveis; as mulheres que morrem ao tentar interromper uma gravidez. São mortes que, em condições de salubridade, seriam evitadas. Aqui então aparece a variável que determina viver ou morrer: a clandestinidade. O que mata as mulheres não é o aborto, mas sim que o façam em lugares clandestinos. As mulheres que morrem são aquelas que não puderam pagar a intervenção em um lugar seguro e portanto é sem dúvida uma questão de saúde pública. Isso é fundamental porque, em um território em que a saúde pública é conhecida por sua qualidade, mulheres que morrem por serem vítimas de abortos inseguros refletem uma condição ideológica. Os recursos estão lá, mas ainda assim temos cerca de 50 pessoas que morrem a cada ano ao tentar interromper uma gravidez.

Além disso, as mulheres que se expõem a uma precariedade de uma morte clandestina têm que escolher entre viver ou se submeter à possibilidade de serem julgadas e estigmatizadas socialmente. Então morrem, morrem nas piores condições: na solidão de um Estado que as abandonou e que poderia ter tido a possibilidade de acolhê-las e dar-lhes a oportunidade de serem salvas. Esses instrumentos são os que devemos comover, e novamente o compromisso que devemos assumir a partir da política, de nos questionar sobre que tipo de instituições estamos gerando, e nos perguntar de que maneira nossa saúde pública se tornou modelo.

Por último e não menos importante está o eixo moral, e quero ser enfática no que para mim não se trata somente de religião. Durante os últimos anos temos vivido na América Latina um retorno dos discursos conservadores morais. Discursos que disciplinam, que tomam força do violento senso comum. Creio que aqui reside o mais complexo e enraizado argumento contra a legalização do aborto. Não se trata unicamente de um direito, ou das vidas que se perdem, se trata de um poder doutrinante que, nas palavras da grande Rita Segato, “é a pedra angular e o eixo de gravidade do edifício de todos os poderes”. A questão de gênero é o cimento, a sustentação de outras formas de dominação. Por isso, é tão difícil de mover e não será alcançada só com a política.

O único caminho para combater esse argumento é a profunda convicção de que o que devemos mudar é essa ordem, a ordem patriarcal que só nos traz violência e dominação. É reconhecer que o Estado não pode comportar-se como um subordinado do patriarcado e sim como uma ordem construída entre todos e que para isso deve reconhecer (e não dominar) a quem o habita.

Então, enquanto o Estado seguir ocupando esse lugar, enquanto apesar de conhecer a problemática, de ter os recursos, de não oferecer as garantias necessárias para o exercício dos direitos e seguir empurrando os corpos gestantes para morrer na clandestinidade, as mortes por aborto serão feminicídios de Estado.

Assim surgiu a necessidade de uma iniciativa que recorra à escuta, que reconheça a experiência que o debate nos deixou. O projeto de reparação e reconhecimento para os filhos e filhas que perderam suas mães em um aborto clandestino tem a intenção de que ao menos eles e elas não tenham que cair também na perpertualidade da clandestinidade. Pretende que o Estado reconheça que é parte desse feminicídio tomando posição na sua falta de ação para um problema que tem levado vidas, histórias e famílias.

Não podemos permitir que também os filhos e filhas sejam afetados, não podemos querer isso para o futuro, para as próximas gerações. Temos que ser capazes de gerar ferramentas que nos permitam repensar a condição do Estado e seu papel frente às garantias de direitos. Porque esses filhos e filhas têm que poder dar nome e reivindicar aquilo que é justo e que lhes foi tirado por responsabilidade de um Estado que decidiu não escutar: uma vida livre de violência e o direito à vida em família.

Nancy González é senadora argentina do Estado Chubut pela Frente pela Vitoria. Criadora do projeto que busca dar reparação e reconhecimento a filhas e filhos de mulheres que morreram em decorrência de abortos clandestinos e inseguros.

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