Foto: Mídia NINJA

Um questionamento tem me perseguido há tempos: que sentido pode fazer uma lei que permite que mulheres cobrem por sexo e, simultaneamente, criminaliza quem paga por seus serviços? Confesso que já tentei debater essa ideia em muitos prostíbulos Brasil afora, e fui recebida por minhas colegas com olhares muito mais do que questionadores, incrédulos.

Como funcionaria isso na prática? Cumpriríamos nosso horário de trabalho sem que ninguém nos contratasse, já que pagar por sexo seria um crime? Induziríamos os clientes ao crime?

Por anos, procurei e não encontrei uma resposta clara, até que ontem pela manhã, um longo debate no Instagram com uma garota dita abolicionista elucidou a questão. Eu pergunto a ela o que devo eu, prostituta, fazer no dia seguinte à aprovação do modelo de criminalização do cliente no Brasil. No que devo trabalhar? Conseguiremos todas empregos imediatamente, em especial considerando o momento que o país atravessa? Me responde a menina que isso é uma questão simples de resolver: basta que eu continue exercendo a prostituição até encontrar outra alternativa laboral.

Não fiquei surpresa com a resposta, mas realmente não esperava que ela verbalizasse este pensamento de modo tão canalha, direto e reto. O modelo que ela defende, portanto, é simplesmente inviável, não traz soluções – apenas cria um novo problema para as trabalhadoras sexuais, que a partir dali passam a atuar de modo ainda mais clandestino.

Ela me ameaçava: “prepare-se, este modelo chegará logo por aqui!” Feliz ou infelizmente, ela tem razão: o pl 377/11, que defende modelo similar ao sueco para a regulamentação da prostituição no Brasil, tramita no Congresso desde 2011. Foi arquivado, e recentemente desarquivado. De autoria do deputado João Campos (o mesmo da “cura gay”), usa exatamente os mesmos argumentos das feministas “abolicionistas” em sua defesa. Quando a lembrei disso, me chamou de desonesta – no entanto, são fatos: aqui e no resto do mundo, há vertentes feministas se aliando ao fundamentalismo religioso no que toca a pautas como pornografia, prostituição e direitos das pessoas trans.

Não é um fenômeno recente, aliás, Dworkin e Mackinnon se aliaram ao que havia de mais sinistro na política norte americana dos anos 70/80 para emplacar suas leis antipornografia, rejeitadas por serem consideradas inconstitucionais. Ao mesmo tempo, me parece um fenômeno bem atual: em tempos de avanço brutal do conservadorismo, não é de se estranhar que este tipo de pauta ganhe espaço e apoio.

O radfeminismo, lamentavelmente, tem se mostrado como o cavalo de troia que leva dogmas do fundamentalismo religioso para o seio dos feminismos e das esquerdas. Sob o guarda-chuva muito amplo de defesa dos direitos das mulheres, em algum ponto se lhes tira o direito à escolha e ao livre arbítrio, em nome muitas vezes de um ideal de fragilidade que deveríamos estar combatendo, não reforçando (até por ser uma prerrogativa machista e patriarcal, a suposta fragilidade feminina).

Quando se fala de modelo sueco, duas coisas precisam ser lembradas. A primeira delas é que ele foi implantado na Suécia em 1999. A segunda é que foi implantado como parte de um pacote de medidas que tinham por objetivo estimular a igualdade de gênero, ao contrário do que vem acontecendo em outros países que mais recentemente adotaram o modelo _ que simplesmente o implantaram sem nenhuma medida que realmente vise tirar as mulheres da prostituição, a exemplo do que a minha cara nova não-amiga sugerira em nosso curto e hostil debate.

Pois bem: isso mostra o lado profundamente hipócrita do modelo: se propõe algo que se sabe, não se cumprirá. Mas aparentemente, o cumprimento da lei não é relevante, o que é verdadeiramente relevante é poder dizer: “sim, fizemos algo para tirá-las de baixo de nossos olhos”.

Voltando à Suécia de 1999, é mais ou menos neste momento que surge a internet, e com ela a maravilhosa possibilidade de se anunciar serviços sexuais em sites. É muito fácil perceber que a diminuição da prostituição de rua naquele país se deu muito mais por influência da internet do que de leis de criminalização.

Agora, vamos ao Brasil de 2019. O desemprego assola as cidades, a precarização das leis trabalhistas jogando mais e mais pessoas na informalidade a cada dia. Um plano urgente de combate à miséria crescente é necessário, e no entanto, sabe-se que o atual governo pauta suas ações no sentido oposto.

Lhes pergunto: é neste exato momento que nos uniremos à bancada fundamentalista para apoiar um projeto que visa apenas controlar corpos e comportamentos de mulheres? Eu pensaria melhor antes de defender este modelo com unhas e dentes. Porém, aparentemente, o pensar mais profundo é uma possibilidade indisponível tanto para bolsominions quanto para radfeministas.

De qualquer modo, tenho acompanhado algumas páginas que defendem a “abolição” da prostituição. A implantação do modelo sueco de criminalização do cliente no Brasil não me parece uma realidade distante, e eu voltei a acompanhar essas questões bem de perto. Não como um debate – vocês sabem, como prostituta a minha palavra não é levada a sério, de qualquer modo – mas como observadora.

Eu estranho sempre que as abolicionistas da prostituição não tenham como pauta principal a erradicação da miséria, a meu ver o único caminho para se acabar com a prostituição.

A partir dessas leituras constantes, cheguei a um texto de Sandrine Goldschmidt traduzido para uma página feminista brasileira, cujo título sugere que o modelo abolicionista seria o único que contemplaria plenamente a vontade das prostitutas. Bom, nós aqui precisamos necessariamente nos ater a questões locais: o texto apresenta uma entrevista com a ativista Mickey Meji, que atuou como prostituta na África do Sul – um país onde a prostituição é totalmente criminalizada, ou seja: Mickey enquanto se prostituía, cometia um crime. Passar da condição de criminosa para a condição de uma trabalhadora que pode oferecer um serviço – ainda que seu contratante seja ainda tido como criminoso – pode soar como uma boa vantagem.

Eu lembro que, embora Mickey afirme que as prostitutas sul africanas podem dispor de preservativos em boa quantidade, a posse de preservativos é usados como evidência contra mulheres suspeitas de prostituição naquele país. Isso muitas vezes faz com que elas não os tenham consigo.

A história de Mickey é parecida com a história de muitas de nós: chegou à prostituição por conta da pobreza. Eu estranho sempre que as abolicionistas da prostituição não tenham como pauta principal a erradicação da miséria ao redor do mundo, a meu ver o único caminho para se acabar com a prostituição e com outros trabalhos precários, mas ok, este é outro assunto. Bom, em dado momento, ela tem contato com a SWEAT, um sindicato de trabalhadoras sexuais – o texto em questão usa o termo entre aspas, eu retiro as aspas pois são desrespeitosas.

Mickey conta de sua vivência e divergências com a SWEAT, pois não consegue considerar seu trabalho um trabalho – no entanto, é a partir desse contato que pode finalmente conhecer as leis que regem seu trabalho na África do Sul e no mundo, e isso ampliou seus horizontes, independente de Mickey querer seguir por toda a vida sendo uma trabalhadora sexual ou não. A partir de conhecer a atuação da organização abolicionista Embrace Dignity, me parece que encontra seu caminho no ativismo e passa a defender o modelo sueco de abolição da prostituição.

As questões que ela coloca, sobre a redução da expectativa de vida e todas as dificuldades e violência que cercam nossa atividade, infelizmente são intimamente ligadas à sua ilegalidade e ao estigma que a envolve. Apoio que Mickey e as outras companheiras tenham asseguradas condições de buscar outro tipo de atividade como alternativa à prostituição. Apoio mesmo que Mickey prefira o modelo sueco à total criminalização. Quem sabe eu também não preferiria, se exercesse a atividade num país onde ela é totalmente criminalizada? O que não se pode apoiar é a defesa cega de (mais) um modelo que tem por propósito vigiar os corpos e comportamentos das mulheres, sem falar de seu viés xenofóbico – não há segredo nenhum no fato de que um dos propósitos deste modelo é evitar migração em massa de trabalhadoras sexuais para a Europa.

Acima de tudo, brasileira que sou, vivendo num momento de corte diário de direitos e avanço brutal da violência conservadora, me pergunto: um modelo apresentado e defendido pela bancada fundamentalista pode realmente ser de algum modo considerado um modelo que de algum modo garanta de direitos de mulheres? Em que momento a bancada fundamentalista passou a ser defensora dos direitos das mulheres, que estava eu distraída e não vi? Fica o alerta.

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