Ilustração: @OutrasMeninas / Fb

Capa do livro Outras Meninas por @OutrasMeninas

Vivi chegou a meu gabinete acompanhada de sua mãe.

Em seu braço, o curativo de uma sutura. Há poucos dias, a jovem foi atacada por um taxista próximo à sua casa, que tentou empurrá-la para dentro de seu carro. Diante da reação e da negativa, ele golpeou a menina com uma faca ou algo semelhante. Tava escuro. Mais à frente, policiais de uma UPP não se deram conta, muito provavelmente consideraram ser uma treta de casal. A universitária chegou ao gabinete pelas mãos de uma vizinha que vem a ser uma de nossas assessoras. Contamos para Vivi que existem mecanismos e equipamentos que atuam nos casos de violência à mulher. Conversamos sobre sororidade, sobre culpas, sobre ser mulher.  Da Câmara ela seguiu para a Delegacia de Atendimento à Mulher. Cinco horas depois continuava aguardando para registrar a ocorrência.

Vivi se parece comigo quando jovem. Negra, moradora da favela, estudante, cheia de projetos.

Intervalo pra uma votação no plenário. De volta ao gabinete. Recebemos Alex. Sua mãe passou hoje mesmo por uma cirurgia de reconstrução de face após seu ex marido, pai de Alex, tentar matá-la a golpes de madeira, em Realengo. Ele já havia feito ameaças a ela, inclusive enviando um vídeo onde uma mulher morre após ser golpeada a toras. Já havia uma denúncia feita por ela, há uns meses. O caso nos chegou quando a mãe de Alex dera entrada no hospital, através do contato de uma funcionária de uma Secretaria da Mulher na Paraíba, terra natal da família de Alex, que soube do crime e nos pediu que auxiliasse no caso. A família estava desesperada e com medo, vivendo escondida.

Atuamos em rede, junto com outras instituições que deram auxílio jurídico e pressionaram quanto às investigações que, de início, trataram o caso como sendo lesão corporal. Demorou alguns dias para que um mandado de prisão fosse expedido e o caso tratado como tentativa de feminicídio – sua prisão imediata era a única forma de evitar um assassinato, já que não temos hoje mecanismos de proteção para as mulheres em situação de ameaça e risco real de morte. O pai de Alex foi preso. Alex não sabe o que sentir. Contamos para Alex que existem espaços terapêuticos onde ele pode tratar de suas dores emocionais.

A mãe de Alex lembra um pouco a minha mãe. Nordestina, mulher trabalhadora.

Para além das agressões e do sofrimento, vivenciados tanto pela mãe de Alex quanto por Vivi, ambas as histórias ainda se desdobram em outra forma de violência que conforma a cultura patriarcal. Trata-se da violência institucional. A mesma, também com forte recorte racial, diz respeito ao tratamento diferenciado por agentes do Estado às mulheres, com culpabilização ou juízo moral daquelas que buscam os serviços públicos para o exercício de seus direitos mais básicos. Em geral essas violências institucionais acontecem dentro das delegacias ou nos hospitais.

O papel de uma parlamentar também está além de legislar.

Passa por fiscalizar, dialogar e vivenciar o cotidiano da sociedade. Lutar por um mundo sem opressões é batalhar, sobretudo, contra a violência e pelas nossas vidas. Queremos muito mais, muito mais direitos e liberdades de fato. Queremos construir outras possibilidades de viver e de nos relacionarmos no mundo.

Mesmo na roda viva que é ser uma vereadora numa cidade caótica, como o Rio, entre sessões plenárias e audiências, entre votações de projetos inócuos e anúncios preocupantes da prefeitura, a violência contra a mulher é um tema que nos abala e se faz presente a todo instante. É permanente. A todo o momento, mesmo agora, durante a redação deste artigo, ao qual retorno nos intervalos possíveis.

◇ ◇ ◇

A violência contra a mulher, e o devido repúdio, está – como nunca antes na história – nas pautas, nas hashtags, até nas publicidades. Os movimentos feministas locais e por todo o mundo ganharam mais vozes. As grandes manifestações, como a argentina Ni Una a Menos, mobilizaram fortemente a mulherada. No Brasil, o caso de um estupro coletivo colocado nas redes também gerou grande reação. E não é pra menos.

Em 2015, no Brasil, uma mulher sofreu violência sexual a cada duas horas.

E, na imensa maioria, em situação doméstica ou por familiares. O caso é ainda mais grave quando sabemos que muitas não denunciam os abusos e agressões sofridas. O medo, a dependência econômica, a família e os valores são elementos de pressão que levam ao sofrimento silencioso.

Todos os índices reforçam o que já está evidente no cotidiano: a violência contra a mulher é enorme, em especial no âmbito familiar. Por muito tempo a expressão “em briga de marido e mulher não se mete a colher” contribuiu para que a incidência da violência no âmbito doméstico fosse tratada como uma questão privada. Hoje sabemos que isto não é verdade. Trata-se de um problema social!

Os dados na cidade do Rio e por todo o Brasil são alarmantes. Em nosso estado, o delito com maior registro nas delegacias é o de lesão corporal dolosa, sendo a maioria das vítimas mulheres em condição doméstica.

Embora dados evidenciem que apesar de todas as mulheres estarem suscetíveis a sofrerem a violência machista, numa sociedade capitalista, essa violência é um problema social que atinge diretamente mulheres pobres, faveladas e periféricas. Ou seja, estas mulheres estão ainda mais vulneráveis, pois, para além do machismo, estão submetidas também a outras formas de opressões, como o racismo e a exclusão social.

Fica mais fácil entender essa relação quando olhamos para o assustador fato de que 70% dos pobres do planeta são mulheres.

Esse cenário de barbárie também se expressa de forma difusa em nosso cotidiano. Pequenos gestos levam a uma cultura da violência e do estupro. As suas formas são muitas, sutis e veladas. A expressão física e sexual do machismo é, na verdade, a ponta desse iceberg.

Essa realidade bate à nossa porta diariamente. E não só no sentido figurado. Como vereadora e presidenta da Comissão da Mulher, nos tornamos, enquanto um mandato coletivo, pouco a pouco, um ponto focal sobre o tema na Câmara carioca. Nesse sentido, logo na primeira semana dos trabalhos legislativos do ano, fomos procuradas por uma servidora da própria Casa parlamentar, que denunciou assédio moral e sexual em seu espaço de trabalho. O assédio tem consequências objetivas e provoca graves danos à saúde, à dignidade, à honra, à imagem, à personalidade das mulheres trabalhadoras, e sua incidência vem crescendo.

Um mandato parlamentar tem limitações institucionais para lidar com questões como essas, mas para além de um primeiro acolhimento, atuamos em rede para que possamos encaminhar a vítima para as instâncias existentes que possam dar o adequado tratamento ao seu caso.

O que está colocado nas ruas, lares, empresas, escolas é a submissão pela violência cotidiana. E é no dia a dia e nas escolhas de vida que me somo às mulheres que dizem basta à violência!

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