Transformar o luto em luta é o legado mais poderoso que Marielle Franco nos poderia deixar.

Foto: Mídia NINJA

Poucos textos se impuseram em mim como aquele que escrevi na manhã do assassinato de Marielle Franco. Num mundo e num país em que todos os dias desfilam mortes diante dos nossas telas, tinham acabado de matar uma mulher que eu nunca conheci. E contrariando a indiferença que normalmente dedicamos ao desaparecimento de desconhecidos, aquela morte rasgava-me por dentro e eu precisava de dizer porquê. Eu escrevi:

Porque no fundo, ao ler a notícia, todos sentimos o que escreveu Alexandra Lucas Coelho: ‘o país onde esta mulher voltará a pisar ainda não existe. E sem o ainda estamos todos mortos’. Neste Brasil estamos todas mortas. As mulheres, os negros, os pobres, os gays, os trans, os índios, os sem terra, os sem teto, os sem mais nada do que a dignidade de ficar do lado certo.

Esse é um dos traços mais comuns da afirmação dos ultra conservadores no mundo. A criação de bodes expiatórios a partir de rupturas sociais, ou seja, a exploração de preconceitos sociais para um discurso de ódio e violência contra inimigos internos. O bolsonarismo fez avançar a sua agenda instigando o ódio contra todos os que são apontados como moralmente responsáveis pelos males do mundo, legitimando a violência contra eles.

Os gays, claro, mas também as feministas, as negras, os pobres, os representantes políticos de esquerda, os ativistas sociais, os que se opuseram ao golpe, os que denunciam as milícias e a sua ligação aos podres poderes políticos.

Todos párias, todos mortos, porque querem apagar a sua existência. Não necessariamente física mas social, cultural, econômica, política.

Marielle foi covardemente executada por ser quem era e por defender que esta gente tem voz própria. Um ano depois, Bolsonaro é presidente, Lula é preso político e Jean Wyllys é um exilado. O mundo ficou um lugar pior depois que ela morreu. O mundo ficou um lugar pior porque ela foi assassinada.

De uma forma ou de outra, acho que todas nós vimos todos os monstros a esgueirarem-se cá para fora no vazio daquela manhã.

E o impacto foi tão grande que ecoou no mundo como um trovão: “Quem matou Marielle? Quem mandou matar?”. Esse grito transformou-se numa bandeira de democracia, e depois em “Ele Não”. É grito de unidade que dará frutos.

Em Portugal, onde as manifestações por justiça porMarielle e Anderson juntaram milhares de pessoas, continuaremos a exigir justiça. Por isso demos simbolicamente o seu nome à rua da sede do Bloco de Esquerda em Lisboa. Porque a nossa promessa é não deixar esquecer quem era e porque mataram Marielle. Porque aqui também não nos chega a suspeita de quem matou. Não é só o Brasil, todas nós só nos reencontraremos na justiça de saber e condenar quem mandou matar.

Quando hoje mais cedo li a coluna de Driade Aguiar sobre o mesmo assunto, este texto ainda não tinha destino na minha cabeça. Ao lê-lo lembrei-me daquela manhã em que uma negra brasileira e uma branca portuguesa partilharam não uma dor, que essa não é comparável, mas uma semente.

Transformar o luto em luta é o legado mais poderoso que Marielle Franco nos poderia deixar.

É por causa de mulheres como ela, Dríade, e tantas outras, Manuelas, Sonias, Marias, guerreiras que lutam por esse chão brasileiro que, um ano depois, tenho a certeza que o país que Marielle voltará a pisar apenas ainda não existe. Há esperança. “Mil outras Marielles surgirão” para o construir.

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