Foto: Mídia NINJA

Há alguns dias, estive em Ituiutaba, Minas Gerais, palestrando sobre direitos humanos para alunos de diversos cursos na Universidade Estadual de Minas Gerais. O evento, intitulado “Muito Prazer, nós somos os ‘tais’ direitos humanos; mobilizou toda a comunidade acadêmica, movimentos sociais e autoridades locais por mais de um mês. Na minha apresentação, os participantes pareciam preocupados com o crescimento do discurso anti-direitos, e na derrocada dos direitos e da democracia que testemunhamos nos últimos anos. Temiam o fim, ou a derrota de direitos humanos enquanto conceito. Essa reflexão merece ser replicada aqui.

Muitos especialistas cogitavam que os 100 anos entre 1948 e 2048 marcariam um “século de direitos” na história humana. Realmente, no marco dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, temos que reconhecer que o planeta progrediu muito para superar o trauma do Holocausto, onde a ingenuidade, tecnologia e processos gerenciais de toda uma nação foram aplicados para institucionalizar o genocídio, fazendo da discriminação e da morte política públicas.

Da incepção dos direitos humanos enquanto conceito universal, sua institucionalização enquanto sistema de tratados e mecanismos internacionais de implementação, à sua incorporação interna nas constituições; à regionalização dos sistemas, e então à adesão de boa parte da sociedade civil ao conceito enquanto ferramenta de luta; os direitos humanos passaram a integrar o vocabulário civilizatório, desenvolvendo-se nas concepções adversas de uma guerra fria e um mundo ainda colonizado. Seus vícios de origem — etnocentrismo ocidental, implementação lateral que poupa de implementação forçosa os estados mais poderosos — não diminuem o marco que verias pessoas, seja uma ativista dos direitos das mulheres no interior de Gana ou umm a pessoa analfabeta numa ocupação na América Latina; já incorporam o conceito de “direitos” no seu discurso libertário. É um marco considerável atingido por um conceito elaborado por diplomatas em genebra e Nova York apenas 70 anos atrás.

O crescimento do populismo a nível global, testemunhado com Brexit, o crescimento dos partidos de direita na europa, a eleição de Trump nos EUA todos servem de contexto para o recrudescimento da situação no Brasil, com o crescimento do discurso de ódio, o crescimento de demagogos da estirpe de Jair Bolsonaro, e o enfraquecimento institucional da democracia após o golpe. Os jovens alunos da UEMG tinham vários motivos para temer o fim desse processo civilizatório — afinal, testemunhavam mesmo entre os próprios alunos do curso de direito o crescimento de discurso anti-direitos e anti-democracia.

Comigo no evento estava Nilmário Miranda; cuja fala encerrou o mês de atividades. Achei oportuno não pela trajetória institucional de Nilmario enquanto Ministro ou parlamentar; mas enquanto perseguido político, prisioneiro de consciência, sobrevivente de tortura e pessoa que esteve presente em cada passo que levou o país da ditadura até a democracia, da repressão às políticas públicas de direitos. Para os jovens ali presentes, o relato franco do veterano sobre o que era viver em uma sociedade sem direitos deixou uma marca visível — via os rostos se contorcerem ao ouvir do cárcere, das torturas, das arbitrariedades às quais sobreviveu. Vi as pessoas saírem dali motivadas a defender conquistas como o SUS, a dignidade do trabalho, a proteção de minorias e outras políticas sociais conquistadas nessa década.

A iniciativa da UEMG de Ituiutaba me impressionou também por outro motivo —entre todos os similares onde já apresentei, foi o evento menos endógeno ao movimento de direitos humanos e à esquerda tradicional. Apesar do envolvimento dos movimentos sociais e das autoridades locais nas atividades de ensino, extensão e pesquisa propostas; o grosso das atividades foi organizada pelos alunos; a vasta maioria dos quais estavam tendo seu primeiro contato com o conceito. Os coletivos identitários, os alunos com formação política e trajetória partidária também participavam, mas era notório a diversidade política e ideológica entre os participantes. Era um evento educacional por excelência, destoando da polarização que normalmente assombra a pauta nos dias de hoje. A sensação de conversar com a platéia após a conclusão do evento, e ouvir diversas pessoas manifestarem o interesse por defender o conceito nos seus círculos sociais, me fez acreditar que com uma estratégia certa, ainda podemos reverter os retrocessos e manter o progresso do ‘século de direitos’.

Fez diferença a atividade ter abraçado a condição de desconhecimento do público alvo, ao invés de estigmatizá-la. “Nós somos os tais direitos humanos” parte do pressuposto preconceituoso, onde os ‘tais’ direitos humanos são personalizados e acusados de toda estirpe de calúnia. É onde conseguiram conversar, de forma didática, com o centro, com o apolítico; com o anti-político e com o analfabeto político. Rompendo bolhas linguísticas típicas do discurso identitário pós-moderno, lidaram com a dignidade humana no seu conceito mais primal, antes de expandir o vocabulário cuidadosamente para fazer homens lidar com gênero, brancos lidarem com etnia e raça, religiosos e heteronormativos lidarem com diversidade sexual; tudo em um contexto onde essas lutas são apresentadas como recortes de uma luta maior, republicana: a criação de uma sociedade livre, justa, democrática, diversa e inclusiva.

A esquerda e o movimento de direitos humanos deveria tomar nota desse didatismo, retendo a habilidade de recrutar o ex-paneleiro, o apolítico, o indignado com a corrupção que só agora se vê enganado. Tem que apresentar propostas para a classe média ao invés de aliená-la como repositória-mor dos ‘ismos’ e ‘fobias’ estigmatizantes. Entender o espaço de fala e a representatividade não como formas de monopólio dos tópicos para a militância organizada; mas como ferramenta de questionamento e expansão dos espaços de diálogo para além das bolhas e caixas-de-ressonância. É hora de interagir, expandir, retomar o debate e convidar ao aprendizado. É hora de perder os vícios de ego e linguagem que recrutam pro adversário, para finalmente virar a onda anti-direitos com um projeto que tenha amplo apelo social.

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