Foto: Amanda Melo

Dia 2 de junho, dia internacional de trabalhadores e trabalhadoras sexuais, e a chapa de presidenciáveis do PSOL, Guilherme Boulos e Sônia Guajajara, solta uma nota nas redes sociais em apoio ao movimento, assumindo o compromisso de lutar pela “regulamentação do trabalho sexual para que profissionais do sexo tenham direitos trabalhistas e previdenciários garantidos” e por “políticas públicas que combatam o preconceito e o estigma moralista da sociedade que impedem o acesso aos direitos humanos e sociais básicos”. Junto a essa nota, um post trazia a frase “trabalhadoras sexuais são trabalhadoras”.

Mensagens simples e diretas, tocando num ponto que presidenciáveis e 99% das figuras da política desde sempre trataram de evitar, sobretudo em ano eleitoral, mensagens corajosas por dizerem o que já devia ser óbvio, que trabalho sexual é trabalho e que é necessário possuirmos uma legislação que proteja quem o exerce, uma das categorias mais injustamente perseguidas pela truculência do Estado e pela hipocrisia da sociedade, mas os ataques recebidos em função do pronunciamento foram tão violentos que os posts acabaram retirados do ar.

Vejamos então dois dos principais argumentos por trás desses ataques:

  1. defender os direitos de profissionais do sexo significa ser favorável à exploração sexual de menores
  2. prostituição é estupro pago e, logo, não pode ser chamada de trabalho

A lógica das acusações me faz pensar na maneira como reacionários vêm tentando, por meio do estabelecimento de um vínculo direto entre LGBTs e comportamentos violentos ou pedófilos, inviabilizar a existência dessa comunidade, mas é curioso pensar que o grosso dos ataques recebidos por Boulos e Guajajara veio, não dessa direita conservadora, e sim de feministas autointituladas “radicais”.

O primeiro argumento pressupõe que não seria possível existir prostituição sem exploração sexual de menores, uma vez que a mera defesa de trabalhadoras e trabalhadores do sexo implicaria em mostrar-se conivente com a prática da pedofilia.

Não é preciso muito esforço para imaginar a existência da prostituição sem que a exploração sexual de menores esteja envolvida, mas o propósito desse tipo de declaração é menos fazer pensar e mais atrelar inescapavelmente as duas palavras, de forma a sempre que se fale em prostituição ser necessário posicionar-se sobre crianças e adolescentes sendo explorados.

A estratégia é perversa e, em boa medida, uma das responsáveis por fazer com que os mais diversos movimentos sociais se sintam receosos em se aproximar do debate, afinal, quem quer ser acusado de ser favorável à pedofilia? Tantas profissões, sejam elas rurais ou urbanas, vira e mexe denunciadas por explorarem mão-de-obra infantojuvenil ou por sujeitarem trabalhadores a condições análogas à da escravidão, mas parece que apenas no caso da prostituição é impossível dissociar a ação criminosa da atividade oficialmente reconhecida pelo Ministério do Trabalho (a categoria “profissional do sexo” consta da Classificação Brasileira de Ocupações, a CBO, desde 2002).

O segundo argumento propõe que a relação sexual, na prostituição, implica forçosamente no estupro da pessoa que a exerce, uma vez que o consentimento seria obtido por meio do dinheiro. É como se não houvesse escolha nessa profissão, é como se bastasse o cliente arremessar uma quantia xis, qualquer, de notas ou moedas em nossa direção para o programa imediatamente ter que se consumar, é como se nunca pudéssemos recusar clientes, ainda que sujos, ainda que desagradáveis, ainda que violentos, ainda que não fôssemos com a cara… lembro inclusive de uma dessas “radicais” afirmar, sobre o caso da jovem carioca estuprada por 30 homens alguns anos atrás, que se cada um tivesse deixado uma nota de dez reais no criado-mudo aquilo deixaria de ser estupro para se chamar prostituição. Sério mesmo?

Eis a visão de quem jamais exerceu esse trabalho, eis a visão de quem tem horror à mera ideia de fazer sexo com desconhecidos, corpos variados, muitos deles longe do que se considera bonito.

Eis também a visão de quem se acostumou a precificar absolutamente todas as atividades humanas, mas que segue acreditando que o sexo, se precificado, envolverá inevitavelmente estupro.

A homogeneização da categoria é gritante dessa perspectiva, considerando como iguais as múltiplas modalidades do trabalho sexual, as que cobram 30 e as que cobram 300, dos bairros nobres à beira das estradas, acompanhantes de luxo, praticantes de BDSM, massagistas, atrizes pornô, stripers, webcam, quem faz anúncio em orelhão e em sites, quem tem local próprio e quem atende na rua, homens e mulheres, jovens e idosos, brancos e negros, migrantes e nativos, cis e trans: tudo estupro.

E, se tudo por definição é estupro, é como se não tivéssemos condições de dizer nós mesmas quando estamos sendo estupradas e quando não… a banalização da palavra é assustadora.

Há pessoas para quem esse trabalho não faz sentido e que, mesmo em condições adversas, jamais optariam por ele, ao passo que há outras que não veem maiores problemas em exercê-lo ou que consideram-no uma possibilidade diante das outras, em geral poucas, à disposição (para determinados segmentos sociais é difícil entender que nem todo mundo pára para escolher entre fazer medicina ou farmácia, abrir uma empresa ou seguir a “vocação” artística).

Pode-se lutar para que pessoas que não se sintam à vontade nesse tipo de trabalho não precisem optar por ele, pode-se lutar para que as pessoas que precisaram se valer dele não sejam oprimidas ou não tenham que exercê-lo de maneira precária, cobrando valores miseráveis, tendo dificuldade em impor um protocolo de segurança, mas o que me parece absurdo é tentar fazer com que o exercício da prostituição se dê de forma cada vez mais hostil até que um belo dia ninguém, independente das condições em que se veja, consiga sequer cogitar escolher esse caminho.

Tráfico de pessoas, pessoas em cárcere privado, sexo mediante uso de força, sexo envolvendo menores, nada disso é prostituição mas crimes, e dizer que a prostituição envolve obrigatoriamente esses elementos é uma forma não só de inviabilizar o debate, como de demonizar a própria organização política da categoria.

Não vejo problemas em acreditarem que o trabalho sexual deva ser abolido, varrido do mapa, mas sim em não serem trabalhadores e trabalhadoras do sexo que encabecem essa luta. Se, para você, faz sentido acreditar nessa “abolição”, a primeira tarefa é garantir que pessoas que exerçam a atividade, justo as que sofrerão as consequências diretas de qualquer dessas ações, sejam protagonistas do debate.

Por ora, nenhuma organização de profissionais do sexo se manifesta nesse sentido.

Por ora estamos nos mobilizando, há mais de 30 anos aliás, para fazer frente à truculência da polícia, para diminuir os efeitos do estigma, para poder trabalhar em melhores condições, para termos participação efetiva nas decisões que nos afetam.

Não há feminismo sem prostitutas, não há esquerda sem prostitutas.

Boulos e Guajajara já o sabem, resta saber das demais candidaturas: alguma se arriscará a assumir posição, alguma cometerá a ousadia de dizer o óbvio? Nada sobre nós, sem nós!

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