Cenas do assassinato de Maria Eduarda.

Policias executam suspeitos após confronto na Zona Norte do Rio de Janeiro. Vídeo: Autoria desconhecida.

As imagens da execução extrajudicial de dois homens, alvejados por policiais militares no momento em que se encontravam feridos no chão, em Costa Barros, zona norte do Rio, podem revelar algo além dos números, já amplamente divulgados, de que temos no Brasil a polícia que mais mata no mundo.

Somente as polícias do Rio de Janeiro e São Paulo mataram 42% a mais do que todos os países com pena de morte no mundo

Em 2011, segundo pesquisa da Anistia Internacional. Dados do 10º Anuário Brasileiro de Segurança apontam que nove pessoas foram mortas por policiais a cada dia no país, no ano 2015.

O argumento utilizado de que vivemos uma guerra civil, a justificar as altas taxas de letalidade a partir de ações policiais, além de falacioso, oculta o fato de como estas mortes são produzidas e contempladas no interior do Estado de Direito.

Afinal, não houvesse as cenas gravadas do momento em que os policiais decidiram pela eliminação daquelas vidas, como forma de aplicação de uma pena ilegal pelos atos anteriormente praticados pelos dois homens feridos, seria mais um inquérito de auto de resistência arquivado pela Justiça, sob a rubrica da legitima defesa em situação de um suposto confronto.

Em mais de trezentas decisões de arquivamento de inquéritos de homicídios praticados por policiais em serviço, na cidade do Rio de Janeiro, ocorridos entre 2003 e 2009, observei em tese de doutorado no Departamento de Ciência Política da UFF que a maneira como os policiais procedem no uso letal da força é o que menos importa para a Justiça e, em certo sentido, para parcela significativa da sociedade.

Não podemos esquecer que uma manifestação a favor das referidas execuções em Costa Barros recolheu mais de 50 mil assinaturas nas redes sociais, em menos de 24 horas.

A polícia mata, mas não mata sozinha.

A questão que está em jogo, no entanto, não é como a polícia mata, mas sim quem ela mata e onde ela mata. Pouco ou quase nada se fala sobre a dinâmica do evento que produziu a morte nos autos de resistência.

A definição do morto como inimigo acaba por operar uma inversão na linha da investigação, passando o falecido a ser o sujeito suspeito/investigado em seus vários aspectos, a ponto da definição da legalidade da ação policial estar quase que completamente vinculada à definição do modo de vida do morto.

No curso das investigações foi constatado não só que a vítima, de fato, vivia uma vida de crimes, tendo sido inclusive condenada por três vezes pela prática de tráfico de entorpecentes, bem como era o gerente do tráfico na localidade onde se deu o ocorrido. Assim, fica claro que o autor agiu acobertado pela excludente da ilicitude da legitima defesa, nos termos do art. 25 do Código Penal. (PROC. 2005.001-049678-1, da 1ª Vara Criminal).

Este é apenas um dos modelos de arquivamento do Ministério Público Estadual para justificar a imensa letalidade praticada pelas agências policiais, descrito na minha pesquisa de doutorado.

A construção do inimigo é o caminho utilizado para se contemplar o massacre vital, que autoriza o extermínio de traficantes de drogas, ou de qualquer pessoa definida enquanto tal, para a proteção da sociedade.

Foi assim no caso Amarildo, no caso DG, e até do menino Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, morto em ação policial no Complexo do Alemão. Era traficante ou era pedreiro? Era traficante ou era dançarino? Era traficante ou era um menino?

Fossem eles definidos como traficantes não teriam direito à vida.

Ao comentar as mortes produzidas por ações policiais, os veículos de comunicação insistem em separar os mortos que tem passagem pela policia, os indignos de vida, daqueles que mantém a dignidade pelo atributo da cidadania, em razão de não possuírem antecedentes criminais.

Não sendo possível a desqualificação da vítima, policiais são presos e apresentados também como monstros pelo mesmo poder jurídico político, agora sob o aplauso daqueles que se dizem defensores de direitos humanos, mas que não conseguem pensar para além do próprio sistema que produz o massacre.

Acreditar que a punição de policiais é o caminho para conter a violência do Estado é como colocar a raposa para tomar conta do galinheiro.

Ao punir policiais que são identificados no uso abusivo da força, inclusive da letal, o Estado oculta a sua participação na política de extermínio de inimigos, reduzindo o debate à individualização do desvio de conduta. Conclusão: a política segue intocável com a troca das peças em operação na máquina.

O Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, Comandante Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, nos dois governos Brizola, ao tratar do processo de remilitarização da segurança pública, pós-constituinte de 1988, que resultou na primeira grande intervenção das Forças Armadas, notadamente do Exército, assumindo e executando tarefas próprias das corporações policiais – naquilo que ficou conhecido como Operação Rio, no ano de 1991 – afirmou: entre as razões da remilitarização se encontra o repúdio à aplicação de uma política de segurança com garantia de direitos fundamentais para os criminosos.

E ainda existem muitos setores da esquerda, favoráveis à desmilitarização da segurança, que bradam: “nós não estamos aqui para defender bandidos!”.

Um grande paradoxo! A aplicação do estatuto legal aos criminosos é defesa sim dos criminosos, principalmente em um modelo militarizado que os define como inimigos matáveis. Mas aqui também temos outro problema: se é no Estado de direito que se produz esta letalidade, a partir da sua legitimação pelo poder jurídico/político, não será a tão sonhada universalização da garantia de direitos que trará modificação desta realidade. Os direitos sempre serão aplicados de forma seletiva. Precisamos trabalhar no campo político.

O atual estágio da proibição das drogas em nosso país nos informa que os mortos existem não pelo uso destas substâncias, mas sim por uma política de segurança que contempla o extermínio da população negra, pobre e jovem do nosso país.

Não poderemos intervir para evitar o quadro atual deste massacre a conta-gotas sem apontarmos para a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas feitas ilícitas. Outras lutas virão e estaremos ao lado dos abolicionistas.

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