Juan Travnik. Cemitério Argentino. Darwin. 2007

Juan Travnik. Cemitério Argentino. Darwin. 2007

Amanheço com a certeza de que é dois de abril. Uma voz fala em minha cabeça, e o som das fanfarras militares ressalta a memória. É o aniversário da Guerra das Malvinas – a mais recente aventura sangrenta do terrorismo de Estado – que foi realizada na Argentina entre 1976 e 1983.

Uma guerra que começou como bravata de uma Ditadura em declínio, para recuperar algumas ilhas ancoradas nos mares do sul que estavam (e estão) em poder britânico desde o final do século XIX.

“Pra cima, as Malvinas são argentinas, finalmente, os militares fizeram algo de bom”, é a voz que veio do fundo desta história que cumpre este dois de abril, 35 anos atrás, a voz de meu pai nessa manhã, só consegui tapar os ouvidos com os travesseiros, incorporando não sei com quais forças um luto, outro luto insuportável. Nada que fizeram os militares poderia ser bom para mim ou para o povo, já tinha certeza antes de comprovar. Ou por acaso eles não assassinaram e desapareceram com dezenas de milhares de pessoas? E muitos mais foram presos, famílias inteiras empurradas ao exílio.

A ditadura militar estava em queda nesse outono incipiente de 1982, os sindicatos começavam a organizar-se para denunciar a violência econômica que destruiu a indústria nacional e os partidos políticos, reunidos em um “multi-partido”, começavam a exigir eleições. A frase dos militares “as urnas estão bem guardadas” – como recusa a qualquer plano de eleição – havia inflamado o ânimo popular. Ir à guerra contra a Grã-Bretanha era uma loucura, mas estava claro que a loucura queria desviar a atenção do enfraquecimento das estruturas da ditadura militar.

Em 1982 eu tinha 15 anos e mais de um romance com recrutas, garotos que tinham suas cabeças raspadas e eram obrigados ao serviço militar de mais de um ano, em que muitos perdiam seus estudos, amantes, inocência, até mesmo a vida; era fácil desaparecer sob esse regime e os nomes daqueles que nunca mais voltaram acumulam nas listas de desaparecidos.

Aos 18 anos, os homens tinham que doar um ano para o país, um ano em que a sua vida estava servindo aos militares que organizaram a pior ditadura militar na história da Argentina, e que nesse mesmo 1982, também os levaria a morrer na guerra ou ver a morte, o que às vezes é quase o mesmo: basta a constatação de que há mais sobreviventes que se suicidaram do que aqueles que morreram nas Ilhas Malvinas naqueles curtos meses, de abril a junho, na solidão e no frio, sob a hostilidade de seus superiores que eram capazes de torturar e humilhar por qualquer desvio disciplinar, como nos tempos coloniais o fizeram os conquistadores com os povos nativos.

Esses jovens foram carne de canhão nesta guerra em que os ditadores não colocaram seus corpos, e sim sua covardia.

Naquele dois de abril ainda não se sabia a que tipo de tortura estavam submetidos os garotos com quem eu habitualmente me encontrava nos bailes, mas mesmo com a euforia do meu pai e de tantos outros que saíram a celebrar nas ruas a recuperação das ilhas, eu estava de luto.

Três dias antes, 30 de março, havia sido a primeira marcha sindical popular contra a ditadura, que terminou com uma morte nas ruas e a repressão tinha contaminado o ar com gases e terror; como poderia a praça estar lotada novamente, mas agora celebrando um ditador? A guerra estava longe, mas nesse território ferido de uma Argentina que tolera um campo de concentração, como se viu, que seguia tentando explicar a indiferença da maioria com a frase “alguma coisa eles devem ter feito” – justificando sequestros à luz do dia, os corpos que ainda estão desaparecidos, os massacres em qualquer esquina em confrontos nitidamente forjados – uma façanha ainda militar, que mesmo com pouca chance de êxito, permitia que não só os repressores pudessem se ver com outro espelho.

Éramos como imperadores nus querendo acreditar em um reflexo heroico, que logo nos devolveu a imagem da poça mais barrenta de lama.

Não foi fácil o que veio depois dessa manobra de distração que custou tantas vidas, que converteu outras em um contínuo de pesadelos frios, mutilação e bombardeios. Entender que havia algo que podia se chamar de “nosso” na demanda por soberania das Ilhas Malvinas. A propaganda da ditadura havia se apoiado desde o princípio, como em todos os fascismos, no medo do inimigo externo, que era apresentado como um germe que entrava no organismo e se não fosse combatido de imediato contaminava o corpo inteiro.

O país inteiro era representado por um corpo humano e suas defesas, que circulavam por veias e pulmões nas animações que se via pela televisão, eram tanques militares bem armados.

Antes mesmo do Mundial de Futebol de 1978 surgiu uma hipótese de conflito que revitalizaria o orgulho de Ser Nacional: estivemos a ponto de ir para guerra com o Chile por uma questão de soberania sobre o canal de Beagle, ao sul da Terra do Fogo, ali onde se acaba o continente e os mares são tão bravos que somente Onas y Yamanas se atreviam a cruzá-los.

Essa reivindicação soberana contra um país vizinho, com o qual se compartilhavam exilados e sonhos revolucionários, ainda que as cordilheiras e os preconceitos encorajem divisões, caiu como uma pêra madura de seus galhos diante do plebiscito que propôs o primeiro governo democrático, de Raúl Alfonsin. Não nos era necessário mais feridas, havíamos tido suficientes.

Como, então, recuperar o desejo de soberania sobre algumas ilhas, tapadas pelas brumas geladas dos mares do sul? Nos custou entender o porquê do pedido de reconhecimento dos ex-combatentes com seus uniformes camuflados. Tudo que se referia a estética marcial era desprezado, mesmo quando cantávamos em cada marcha, “o que aconteceu nas Malvinas, os jovens que se foram, não devemos esquecê-los e por isso devemos lutar.”

Nos esquecemos por muito tempo. Até que entendemos, como povo, que a soberania sobre as Malvinas era uma reivindicação anticolonial e uma base de guerra britânica em nossos mares do sul não só afeta a Argentina se não todo o continente. Até que entendemos que a soberania sobre as ilhas era o futuro para todos os países do Cone Sul, porque uma base militar ali onde acaba o continente e o vento se forma, é uma ameaça para todos os países da nossa região.

Foi só então que percebemos que havia uma outra noção de pátria possível. Uma com foco na comunidade, em que dizer essa palavra tão querida pelos militares remetia à livre circulação pelas fronteiras políticas, que não são as reconhecidas pelos povos. Tanto temos em comum de um lado e de outro destes pontos de vigilância, que é quase impossível reconhecer qual é a diferença entre Puerto Iguazu e Foz do Iguaçu, por exemplo, que poderiam anular as linhas imaginárias que separam um país do outro.

Isso aconteceu na última década, a década chamada “ganhada”, que embora tenha muitos “poréns” nos ganhos, só podemos pensar como aprofundar os processos que nos tornam irmãos e irmãs compreendendo cada um em nossa própria maneira e para além das línguas que falamos, compartilhamos e que só às vezes parece nos separar.

Não se pode entender a reivindicação pelas Malvinas se você não pensar a partir de uma reivindicação da Pátria Grande, essa, que se torna forte quando nos reconhecemos nos olhos do outro, outro que compartilha algo igual e aproxima algo diferente: um cheiro, um gosto, uma melodia, o ritmo do quadril, o modo que temos de nos aproximar ou de tomar distância estratégica, como ocupamos as ruas e como gritamos para o céu.

É domingo, dois de abril, o governo da Argentina guinou para a direita, igual ao do Brasil, ao de Honduras e do Paraguai.

Nossos povos estão cansados, estamos sofrendo o sufoco da desnaturalização de uma região que podíamos habitar nos reconhecendo cúmplices na luta anticolonial, como quando demos aquele grito que dizia que o tratado de livre comércio com os Estados Unidos era impossível.

Essa data comemorativa de dois de abril pretende impor-se mais uma vez como uma façanha militar, quando na verdade se trata do sacrifício de milhares de jovens, num ano difícil no qual reinava a ditadura militar, e que soubemos construir ao longo de décadas de democracia essa reivindicação de soberania contra o colonialismo.

Nossa memória nos mantém alertas, os vínculos entre os povos desta América Latina, sempre em luta, saberão que cada voo até Malvinas, que faz escala no Brasil, Chile ou Uruguai, merece uma resposta de todos e todas.

O problema de cada território é o problema de todos e nossas redes se tecem mesmo quando querem cortá-las.

É domingo, dois de abril, a data se impõe sobre as tristes mostras de nacionalismo que impregnaram as notícias das mídias hegemônicas do meu país, porque no primeiro dia do mês usaram a bandeira para fechar fronteiras nacionais em defesa de uma pátria branca que não somos e nem queremos ser.

Se impõe cadência ao ritmo de todas as latitudes do nosso continente para dizer basta à brutalidade colonial que não se rende. Devemos a esses garotos que longe dessa façanha puseram tudo o que tinham, seu próprio corpo sem nenhum resguardo, estimulados também dentro da nossa própria covardia como povo para olhar aos olhos e condená-la, a repressão que havíamos sofrido.

É domingo, dois de abril. Estou muito longe de casa e da distância de um oceano, no caminho, o grito se escuta e se sustenta: as Malvinas não são somente Argentinas, são da pátria grande que nos faz irmãos. E que a luta anticolonial é o sangue que corre pelas veias abertas do nosso continente.

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