Há muitas coisas em comum entre o prefeito João Dória e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Ambos empresários e endinheirados, buscaram em atrações na televisão a visibilidade midiática para tornarem-se popstars.

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Com a fama conquistada pela exposição na tevê, Trump e Dória se embrenharam na política, os dois a partir de posições conservadoras: Trump pelo Partido Republicano e Dória pelo PSDB. Dois personagens caricatos, com pouca experiência na vida política tradicional, chegaram à Presidência dos Estados Unidos e à prefeitura de São Paulo.

Mas a prefeitura é pouco para Dória, que está de olho no posto máximo da política brasileira. Para isso, estuda a fundo a campanha presidencial do guru norte-americano com o objetivo de seguir os mesmos passos e usar um poderoso instrumento para construir uma campanha vitoriosa em 2018: o Big Data e a Inteligência Artificial para, através da internet, ganhar apoios e votos.

Atrás da “Campanha Perfeita”, aquela que vai “individualizar” ao máximo a mensagem para conquistar um voto, Dória já contratou agências especializadas em data mining que usam softwares de monitoramento de redes para definir as estratégias e avaliar o impacto sobre tudo o que ele diz e faz. A partir disso, se desenvolvem as “vacinas” para as repercussões negativas, as alavancas para as positivas, e por aí vai…

Foi essa a principal estratégia de Trump nos EUA: contratar empresas para tratar dados pessoais coletados diariamente – a maioria sem o conhecimento e o consentimento dos usuários – com softwares construídos com inteligência artificial para definir perfis, comportamentos e padrões e, assim, construir mensagens políticas.

Qual a novidade? Realizar pesquisas de campo para traçar perfis eleitorais buscando potencializar campanhas e discursos não é uma coisa exatamente nova. A diferença entre o velho marketing político das pesquisas e o novo, baseado em dados, está no tipo de perfil que se pode traçar. Antes se delineavam públicos setoriais por gênero, raça, classe econômica, região, ou seja, por posições políticas tradicionais: direita, esquerda, indecisos. Assim, se construíam grupos de atuação gerais para as campanhas.

Agora não, os dados coletados e tratados por programas e softwares inteligentes conseguem, por exemplo, identificar sentimentos como medo e, a partir disso, definir perfis praticamente individuais dos eleitores. As agências chamam esses novos mecanismos de psicometria, programas que fazem análise de personalidade dos eleitores – inclusive com identificação facial – e conseguem apurar quase que individualmente a tendência de voto das pessoas.

Máquinas que pensam melhor que você

Um destes programas é o War Room, um serviço em português para desenvolver, a partir de dados, o “processamento de linguagem natural”. Ele usa inteligência artificial para monitorar redes sociais – Facebook, Twitter, Instagram -, influenciadores e analisar tudo o que as pessoas estão falando e pensando sobre a situação política e sobre candidatos. A partir disso, conseguem fazer uma gestão da imagem dos candidatos e construir discursos seja para conquistar votos de indecisos, ou anular votos em opositores.

O alcance destes discursos são impulsionados na rede por robôs, ou “bots”, que nada mais são do que programas desenvolvidos para atuar na internet, em particular nas redes sociais, fazendo-se passar por pessoas. A partir de parâmetros inseridos no código como nomes, vocabulários e padrões, esses bots criam contas falsas nas redes sociais, enviam mensagens, fazem comentários. Alguns são fáceis de identificar, outros nem tanto.

Esses mecanismos levam a manipulação da opinião às últimas consequências e pode produzir um cenário em que já não existe mais debate, contraposição de opiniões, em que não se produzem sínteses e buscas de consensos sociais a partir das diferenças. Cria-se um ambiente de indução e controle totalmente sem transparência, verdadeiras ameaças à democracia.

Em entrevista para a BBC, o professor da Universidade da Califórnia e assessor de tecnologia da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, Martin Hilbert, disse que esse volume exacerbado de informações e a possibilidade de tratamento destes dados para intervir na política é muito preocupante. Para ele, o excessivo e sem transparência fluxo de dados entre cidadãos e governantes pode levar o mundo a uma “ditadura da informação”, algo imaginado pelo escritor George Orwell no livro 1984. “Vivemos em um mundo onde políticos podem usar a tecnologia para mudar mentes, operadoras de telefonia celular podem prever nossa localização e algoritmos das redes sociais conseguem decifrar nossa personalidade melhor do que nossos parceiros”.

Ele dá como exemplo as interações que fazemos no Facebook. “Pesquisadores da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, fizeram testes de personalidade com pessoas que franquearam acesso a suas páginas pessoais no Facebook, e estimaram, com ajuda de um algoritmo de computador, com quantas curtidas é possível detectar sua personalidade. Com cem curtidas poderiam prever sua personalidade com acuidade e até outras coisas: sua orientação sexual, origem étnica, opinião religiosa e política, nível de inteligência, se usa substâncias que causam vício ou se tem pais separados. E os pesquisadores detectaram que com 150 curtidas o algoritmo podia prever sua personalidade melhor que seu companheiro. Com 250 curtidas, o algoritmo tem elementos para conhecer sua personalidade melhor do que você”.

É também o que alerta um artigo escrito conjuntamente por quatro pesquisadores publicado na revista Scientific American: A democracia vai sobreviver ao Big Data e à Inteligência Artificial? O texto alerta para a construção de uma sociedade programada, com cidadãos programados pelo controle dos dados e da inteligência artificial.

“Quais efeitos colaterais indesejáveis podemos esperar? Para que a manipulação permaneça despercebida, é necessário um chamado efeito de ressonância – sugestões que são suficientemente personalizadas para cada indivíduo. Desta forma, as tendências locais são gradualmente reforçadas pela repetição, levando todo o caminho até a “bolha de filtro” ou “efeito de câmara de eco”: no final, tudo o que você pode obter é a sua opinião refletida de volta para você. Isso causa polarização social, resultando na formação de grupos separados que não se compreendem mais e se encontram cada vez mais em conflito um com o outro. Desta forma, informações personalizadas podem destruir involuntariamente a coesão social. Isso pode ser observado atualmente na política americana, onde democratas e republicanos estão cada vez mais distantes, de modo que os compromissos políticos tornam-se quase impossíveis. O resultado é uma fragmentação, possivelmente até uma desintegração, da sociedade”.

Este é um dos motivos que torna o debate sobre privacidade e proteção de dados pessoais tão importante: impedir que coletem nossas informações para nos manipularem. Não é teoria da conspiração e nem ficção científica. Isso já aconteceu, e resultou na improvável eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos.

A internet é o problema?

Essa discussão está estreitamente vinculada com a luta para manter a internet um espaço democrático e a serviço da democracia. Sem dúvida nenhuma a internet tem um poder democratizante, Através dela, setores historicamente invisibilizados pelos meios de comunicação puderam se manifestar, permitindo ampliar minimamente a diversidade e a pluralidade do debate público.

As redes sociais deram novos formas à mobilização social, permitiram engajamentos e o florescimento de lutas impensáveis de serem desenvolvidas de forma mais ampla nos tempos pré-internet.

Por isso, não se pode desconsiderar todos os aspectos positivos e potenciais que a internet tem para impulsionar a participação, a cidadania, e garantir espaços de expressão para pessoas, organizações, coletivos, causas que nunca teriam espaço na radiodifusão, ou seja, para aprofundar a própria democracia.

Mas, infelizmente, a internet também é um espaço de controle e o próprio desenvolvimento da tecnologia e a presença de grandes interesses econômicos e políticos na rede podem mudar esse cenário e criar um ambiente no qual a internet se transforme numa antítese disso tudo.

Daí a importância da mobilização em defesa da internet.

Em tempo – nesta quarta-feira a Câmara dos Deputados aprovou emenda ao Projeto da Reforma Política obrigando os provedores de aplicação à internet a removerem, em até 24 horas, conteúdos denunciados como ofensivos a candidatos/as ou partidos políticos no período de campanha eleitoral. E na quinta (05) o Senado Federal confirmou a medida. O argumento é reduzir o impacto dos bots e coibir o discurso de ódio.

Como apontado acima, o uso de dados, inteligência artificial e bots devem ser discutidos de forma séria e transparente. Mas decisões legislativas como essa flertam com o avanço sistemático em curso no país de violações à liberdade de expressão. Ao obrigar um provedor a retirar um conteúdo a partir de mera notificação, sem o devido processo legal, pode-se cercear gravemente a opinião e o debate durante a campanha eleitoral. E isso, somado ao uso do Big Data e a manipulação quase individual e direcionada, pode nos levar para o caminho sem volta do totalitarismo, conforme denunciado em nota da Coalizão Direitos na Rede sobre o tema.

Por tudo isso, é cada vez mais importante que todos estejamos atentos e participando dos temas que envolvem a internet. Se você não se informar e posicionar para garantir direitos e democracia, outros farão por você, e esses outros podem ser pessoas e grupos econômicos que não vão defender o seu interesse, ou pior, máquinas programadas para fazer isso.

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