Foto: Douglas Freitas/ Cobertura Colaborativa

Por Dheik Praia para a Cobertura Colaborativa da Marcha das Mulheres Indígenas

Quando se pensa feminismo, se percebe o rastro do pensamento eurocêntrico presente nas muitas falas espalhadas por todo o Ocidente. Não se poderia ser diferente na América do Sul, se tratando de um espaço territorial sangrado e usurpado ao longo dos séculos. A existência, a cosmovisão, a vida de todos os grupos que ocupavam de modo sinuoso seus respectivos territórios, foi renegada pelo colonizador.

Juntamente à tal fato, temos os africanos em diáspora que tentam, de modo enfático, construir e possibilitar uma ressignificação de território através de sua cultura, sua oralidade e suas práticas guardadas ao longo do tempo. Os povos originários, silenciados por séculos e dizimados de modo incontestável, resistiram da mesma forma, tendo seu espaço territorial como principal reivindicação ao longo do plano desenvolvimentista nacional, que visava a integração.

“Dizem pra gente que nós devemos ser integrados, integrados a quem? A que exatamente? Nós mulheres indígenas, temos muito a contribuir, a somar e a ensinar. Não queremos integração!”, destacou Sônia Guajajara em sua fala de abertura da primeira Marcha de Mulheres Indígenas, tendo em vista que, mesmo após 500 anos de ocupação, a resistência dos povos originários se faz presente e mais que nunca, necessária.

Tal resistência tem a mulher como raiz fecunda, que mesmo depois de todo o genocídio, permanece interessada em manter-se. Ao contrário do que se esperava, os povos indígenas não estão em extinção, não estão no passado. A proposta política que se pensa a partir da perspectiva indígena, é idealizada e projetada para um equilíbrio entre o humano e a natureza, elemento fundamental para se pensar um possível futuro.

Nesta perspectiva a ancestralidade permanece intacta, visto que os ciclos da natureza são continuados e a memória oral dos povos foi preservada de modo equivalente. Após a constituição de 88, alguma estabilidade foi concedida aos povos originários, que o atual desgoverno ameaça e é necessário a ocupação de espaços de luta.

“Ninguém vai te ensinar a lutar, você sabe por si só, você percebe. Tua vivência te possibilita ter consciência de que, para se manter vivo é preciso se aliar. Nosso movimento começou nos Andes, indo de comunidade em comunidade, levando muita porta na cara, muito não e percebendo que se existia dúvidas acerca da prática eficaz do dito “feminismo europeu”, enfatiza Julieta Paredes, Boliviana da Etnia Aymara.

Sobre feminismo comunitário

Foto: Sophia Ferreira/ Cobertura Colaborativa

Paredes conduziu uma roda de conversa sobre “Feminismo Comunitário” na tarde de domingo (10). Muitos militantes e estudantes indígenas, pesquisadores e visitantes do acampamento, marcaram presença na atividade. Julieta, com sua voz incisiva, suas expressões expansivas e sua fala convicta, mapeou o surgimento do feminismo e destacou a linha do tempo colonial que neutralizou as ações das recém invadidas terras americanas.

A partir de 2006, Paredes inicia sua saga em função da construção e mobilização de um pensamento decolonial para um feminismo comunitário, que tem como principal mola propulsora a descolonização do tempo ameríndio. Segundo ela “vivemos em um mundo hegemonicamente eurocêntrico, precisamos posicionar nossos corpos; essa deve ser uma estratégia de resistência, mas para além do físico, precisamos ocupar o território simbólico das palavras”.

Ao longo da roda de conversa, foi possível compreender que o respeito às diferenças é a base para compreender o feminismo comunitário, visto que cada ser humano, cada povo tem sua biografia de luta. O objetivo desta nova vertente do feminismo, partindo da experiência boliviana, é intensificar a noção de resistência a partir da unificação de lutas em um território.

Para Julieta, o pensamento revolucionário eurocidental na América Latina é binário, mas o pensamento indígena é muito amplo, não é quem é amigo ou inimigo e sim quem está disposto a construir soluções para o futuro partindo de uma vivência do presente. Qual seria então os passos para a descolonização desses corpos, dessas mulheres?

“Eu me inspiro pra falar de feminismo comunitário a partir das lideranças indígenas do Brasil, mas tendo o meu lugar de fala a partir do povo Pankararu. É de onde eu me oriento e a partir de onde eu conheço outros povos”, destaca Elisa Pankararu Mestranda da Universidade Federal de Pernambuco.

Para Pankararu, o feminismo comunitário se destina à comunidade, todo aquele que está em comunidade. Mas se pararmos para refletir a essência dele é indígena, e se divide em cinco eixos: corpo, tempo, espaço, movimento e memória.

Em sua fala durante a marcha, Cris Pankararu destacou que “os filhos da colonização ficaram ou misturados ou descendentes”, tal frase ganha força ao se perceber que o silenciamento é uma das ferramentas utilizadas pelo estado para a não afirmação de muitos. Uma pergunta recorrente é se para este quadro, existe reversão. Para a Amazonense Inara Nascimento, do povo Sateré Mawé, doutoranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, foi no feminismo que ela encontrou uma base sólida para reconstruir o percurso de volta às suas origens.

“Viver na cidade era viver no silêncio e durante todo o meu percurso acadêmico, posterguei esse encontro com as minhas raízes e confesso que isso me machucou durante muito tempo. A cidade de Manaus é uma cidade feita por sangue indígena e quase não conversamos sobre isso.”, destaca Inara, que destaca a importância do feminismo para o seu processo de retomada étnica.

Encontrar um lugar, a partir de onde se quer observar e vivenciar o mundo é uma demanda existencial, todos precisam desse fio condutor, caso contrário não se existe sentido no caminhar. “Os espaços feministas naturalmente são anti-racistas, pensando o contemporâneo. Desta forma é possível aglomerar as mais variadas lutas de mulheres indígenas, negras, lgbt+ e também de mulheres brancas, desde que essas repensem sua branquitude”, finaliza Inara que destaca a importância do feminismo que luta junto com as mulheres indígenas.

Foto: Mídia NINJA